(Piet Hein)
Uma das coisas mais incômodas quando a gente tenta traduzir poesia é a
obrigação de seguir a métrica do original. Métrica é uma coisa muito
matemática, muito precisa. O mínimo deslize fica tão evidente como (na
comparação famosa de Raymond Chandler) “uma tarântula numa fatia de manjar
branco”.
Quando é um poema de “verso livre”, cada linha pode ter qualquer número de
sílabas, a critério do poeta. O poema ganha com isso uma alternância muito
variada de cadências, e uma sílaba a mais ou a menos se destaca pouco.
Mas nas famosas formas fixas, onde se trabalha com versos obrigatoriamente
de sete sílabas, de dez, de doze, etc., a reiteração desse ritmo faz com que
mesmo o leitor não-ligado nesse aspecto perceba quando no meio de uma porção de
linhas de dez sílabas aparece uma com onze.
É um verdadeiro prodígio conseguir traduzir um poema estrangeiro mantendo
o sentido original, mantendo as rimas finais dos versos e mantendo a contagem
de sílabas em cada linha. (Nem vou falar de outros efeitos, como rimas
internas, aliterações, contrastes, etc.)
Daí o meu argumento de que mais do que a contagem exata das sílabas, vale
a manutenção de uma cadência bem próxima à cadência do original, mesmo que,
digamos, num soneto em decassílabos (no original) a tradução oscile entre
versos de 9, 10, 11, 12 sílabas – procurando, claro, sempre ficar próximo do
sentido do original, e rimando os versos na mesma ordem.
Uma argumentação muito clara e sensata a esse respeito foi feita pelo
tradutor Álvaro Faleiros, num texto publicado no Suplemento Literário Minas Gerais (maio 2015):
“O ritmo do poema não se devia apenas à distribuição acentual do verso,
mas (...) a sintaxe, o léxico e o encadeamento das idéias eram tão
determinantes quanto a rima e a métrica. Desde então, tenho procurado inverter
a famosa máxima de Haroldo de Campos, para quem a tradução deve ser isomórfica
(ou paramórfica) e o sentido deve ser uma ‘baliza demarcatória’. No jogo de
perdas e ganhos da tradução, estou tentando tratar os aspectos formais como
‘baliza demarcatória’ e fazer da sintaxe e do encadeamento de imagens o meu
‘topo’”.
Os tradutores da linha isomórfica tentam preservar com o maior rigor
possível os efeitos métricos e sonoros do original, mesmo que à custa do
sentido dos versos, em casos extremos. Faleiros inverte isso: para se manter
próximo do sentido e das imagens do original, ele admite pequenas diferenças em
relação à rima e à métrica.
Vou dar exemplo com um poeminha minúsculo de Piet Hein, o autor do famoso
poema da luva (“Perder uma luva é uma dor profunda / mas nem se compara à dor
pungente / de perder a primeira, jogar fora a segunda / e encontrar a primeira
novamente”).
Hein cultivava esses poeminhas curtos a que chamava “grooks”, e um deles
diz, em sua versão inglesa:
There is
one art,
no more,
no less:
to do
all things
with art-
lessness.
Hein defende aqui a simplicidade, a chamada “arte invisível”, aquela que a
gente frui sem perceber como está fruindo. Nisso ele parece concordar com
aqueles escritores que aconselhavam: “procure tudo que estiver muito bem
escrito no seu texto, e então corte”.
O “muito bem escrito” é aquela arte vaidosa, exibicionista, onde o autor
parece estar chamando a atenção para si mesmo e não para o texto. (Visualize
uma peça de teatro sendo representada e de vez em quando o autor aparecendo no
palco e acenando para o público. Tem coisa mais patética?)
Os grooks de Piet Hein são tão bem-humorados que eu vejo uma certa ironia
dele nestas duas últimas linhas, porque ao quebrar a palavra “artlessness” (=a
qualidade daquilo que não exibe “arte” alguma) ele chama a atenção para esse
recurso, e mostra que tem uma artezinha ali, sim senhor.
Esse recurso da quebra da palavra também é usado por Gilberto Gil na letra
de “Refazenda”. Esta canção propõe um modelo bem rígido de quadras com 4-7-7-7
sílabas, aquilo que eu chamo “o verso da embolada”.
(Sobre esse verso, ver aqui:
Diz o poeta:
Abacateiro (4 sílabas)
acataremos teu ato - 7
nós também somos do mato - 7
como o pato e o leão... - 7
Aguardaremos - 4
brincaremos no regato - 7
até que nos tragam frutos - 7
teu amor, teu coração. – 7
Ele propõe essa cadência de sílabas poéticas, 4-7-7-7 e para mantê-la
acaba partindo as palavras mais longas, como Piet Hein fez, para que caibam na
estrofe:
Abacateiro
teu recolhimento é justa-
mente o significado
da palavra temporão.
(...)
Abacateiro
serás meu parceiro soli-
tário nesse itinerário
da leveza pelo ar.
Existe arte nisso; é o próprio antônimo da “artlessness” defendida por
Piet Hein. Mas acho que ele e Gilberto Gil se defenderiam dizendo: “Mas meu
preto... me diga... quantas pessoas, fora você e meia dúzia, perceberam
isso?...”
A gente não percebe. A cadência nos arrasta pelo ouvido com a mesma
autoridade com que a mãe da gente nos arrastava pela orelha.
Eu queria traduzir o versinho inglês de Piet Hein, mas teria (pelo sistema
dos irmãos Campos) que seguir a métrica dele, que é uma métrica
2-2-2-2-2-2-2-2. São oito versos, cada qual com duas sílabas.
A melhor saída foi lembrar o conselho de Álvaro Faleiros e propor uma
tradução com o esquema silábico 3-3-2-2-2-3-2-2, verdadeira violentação do
original, de acordo com as regras mais puristas da tradução. A esperança, no
entanto, é que a cadência (e aqui a quebra de linhas é essencial para impor
essa cadência ao ouvido do leitor, via olho) não sofra nenhuma sacudidela
brusca:
Só existe
uma arte,
nem menos,
nem mais:
fazer
sem ninguém
ver como
se faz.
Perde-se alguma coisa? Muita! A
palavrinha quebrada foi pro espaço, o Expresso 2222 da métrica decolou junto
com ela... Mas minha intenção, mais do
que reproduzir os efeitos sonoros e visuais, era passar o insight, o sentido, o
famigerado “conteúdo” do poema.
Conteúdo que, em poemas metalinguísticos como este, poemas que refletem
sobre a arte de poetar, está na própria forma, na maneira de dizer, e dizer
fazendo concessões, aceitando limites, justamente para que o leitor veja sem
perceber como viu, e pense que não fez esforço algum para entender.
(Aqui, uma página de “grooks de Piet Hein: