quinta-feira, 22 de novembro de 2018

4407) 50 anos do "Álbum Branco" (22.11.2018)




Essas comemorações de gente grisalha são boas porque levam a gente, às vezes, a escutar de novo um disco. Ou ler um livro pela primeira vez, tanto faz. A obra começa a existir de novo, ao estar sendo fruída.

O Álbum Branco é aquele disco barroco dos Beatles, cujos 50 anos de lançamento estão sendo comemorados este mês de novembro. (O lançamento britânico foi no dia 22, e nos EUA no dia 25.) Digo barroco porque é um disco de excessos, de contrastes, de um certo experimentalismo radical onde o entusiasmo é tanto que dispensa a busca de algum objetivo.

Minimalista na capa mas barroco por dentro. Essa exuberância vinha aumentando a cada disco depois de Revolver (1966), onde surgiram as peças orquestrais, a exploração do eletrônico e as sonoridades orientais, que voltariam com maior consciência e domínio no Sgt. Pepper’s (1967).

O álbum branco, gravado um ano depois do outro, é um bricabraque eclético que parece mais uma loja de antiguidades num quarteirão da moda jovem do que uma peça conceitualmente interessante e estruturalmente bem executada, como Sgt. Pepper’s tinha sido.

Reza a lenda que o álbum virou duplo para encerra um contrato de “x” discos que eles queriam cumprir logo, porque a negociação não tinha sido muito favorável para eles. O produtor George Martin teria dito que se eles tirassem daquelas centenas de fitas as doze melhores canções, seria um disco tão bom quanto o Pepper’s. Eles fincaram pé: não, vão ser dois elepês, e chau e bença.

Quais seriam umas hipotéticas doze ou treze faixas que representassem bem o White Album? Não me refiro a escolher as melhores (porque cada um tem as suas), mas as que melhor refletissem o perfil do álbum.  Que mostrasse o que havia de mais típico da sua instrumentação, seus temas, seus efeitos vocais, seu uso do violão acústico...

Uma playlist dessas faixas (o álbum tem trinta), para representar o espírito da obra.

Sem ordem de execução ou cronológica, algumas canções que acho representativas:

1) Violão acústico.
Durante o tempo em que ficaram na Índia com o Maharishi, os Beatles conviveram com Donovan, o compositor de “Atlantis”, “Mellow Yellow”, etc.  Donovan cultivava um estilo de dedilhado (em geral no tom de ré maior) comum em várias tipos de música folk. Outros que usaram muito isso na época foram Bob Dylan e Paul Simon. Essa forma de harmonização e de arpejar está presente em “Dear Prudence”, “Mother Nature’s Son”, “Sexy Sadie”, “Cry Baby Cry”. Cada um escolha a que lhe agrada mais.

2) Historinhas.
Se “Cry Baby Cry” não for escolhida para preencher o item anterior, pode muito bem representar este das historinhas, das letras que são como pequenas HQs. “Cry...” é sobre um reinado meio Lewis Carroll, meio Shirley Jackson, mas também tem o safari caricatural de “Bungalow Bill”, o faroeste busterkeatoniano de “Rocky Raccon”, o pré-reggae riponga de “Obladi Oblada”.

3) Experimentos.
A curiosidade dos Beatles, principalmente de McCartney, para com novos equipamentos de som ou novos instrumentos trouxe para este disco algumas das experiências mais extremas, que eles não repetiriam no futuro. É o caso de “Revolution 9”, a colagem de efeitos sonoros que muitos fãs consideram a pior faixa gravada pelos Beatles. Outras escolhas podem ser a algaravia metaleira de “Helter Skelter”, a  cacofonia obsessiva de “Wild Honey Pie”, a instalação-intervenção de “Why Don’t We Do It In The Road”.

4) Oldies.
O gosto dos Beatles por formas musicais “vintage”, de algumas gerações anteriores à deles, foi certificado na gravação de “When I’m Sixty-Four”. As “oldies” que podem representar essa categoria são “Honey Pie” (que Ian MacDonald considera “um consumado pastiche em escrita e em interpretação”), “Good Night” (que lembra aquelas canções-tema de novelas radiofônicas dos anos 1950), “I Will” (uma balada abolerada dos anos 1950).

Além dessas quatro fixas coringas, indico as minhas preferidas, aquelas que para mim caberiam em qualquer dos melhores discos dos Beatles.

5) “I’m so tired”
É uma das melhores músicas sobre a Insônia em todos os tempos. A voz de Lennon tentando acalentar a si mesma, depois explodindo de impaciência. Aquelas insônias em que cada tiquetaque o relógio parece mais pesado que o anterior.

6) “Julia”
Talvez seja a melhor música que Yoko Ono proporcionou a Lennon, e a delicadeza das imagens era uma coisa nova na poética dele: “ocean child” (o significado de “Yoko” em japonês), “silent cloud”, “sleeping sand”... Ian MacDonald comenta: “É a canção mais infantil e mais auto-reveladora de Lennon; Julia chega a ser quase demasiadamente pessoal para ser exposta ao consumo por parte do público”.

7) “Blackbird”
Seria uma resposta mccartneyana à música anterior, uma canção melodicamente conduzida por um ponteio de violão acústico, do princípio ao fim. Uma canção desse-tamanhinho que sabiamente foi gravada do tamanho ideal e ficou perfeita.

8) While My Guitar Gently Weeps
Esta canção de George é uma das mais ambiciosas musicalmente, e a gravação eu acho impecável: bateria, linha de baixo, levada, timbre lancinante da guitarra, o solo de Eric Clapton. Ian MacDonald não gosta nem um pouco desta faixa.

9) Martha My Dear
Esta canção de amor de MacCartney para sua cadela felpuda é um daqueles exemplos de uma montanha de criatividade e de esforço artesanal (arranjos orquestrais, gravações) parindo, no final de tudo, uma homenagem a um animal doméstico. Mas a elaboração musical vale por tudo.

10) Piggies
O mesmo vale para essa mistura do eletrônico com o barroco, para resultar numa sátira orwelliana à animalidade do mundo. Esses cravos bem temperados fazem pensar num curta surrealista dirigido por Walerian Borowczyk ou Jan Svankmajer.

11) Happiness Is A Warm Gun

Esta é talvez a música estruturalmente mais complexa do disco inteiro, e por muito tempo foi minha favorita, por ser uma espécie de trem com vários vagões sucessivos, cada qual diferentíssimo dos anteriores: “She’s not a girl...”; “She’s well acquainted...”; “I need a fix...”; “Mother Superior jump the gun...”; “Happiness is a warm gun...”; “When I hold you in my arms...”.

12) Long long long
Esta canção de George Harrison parece uma coisa fora do mundo, como um filme preto-e-branco tcheco com legendas em francês, filmado através de vidros fumê. Um clima de estranhamento, insubstancialidade, que está presente também em “Blue Jay Way” (de Magical Mystery Tour), em “Northern Song” (de Yellow Submarine) e em uma ou outra faixa do enorme All Things Must Pass, primeiro álbum solo de Harrison.

13) Yer Blues
Para muitos, a melhor faixa de Lennon no disco, e dá para ver por que. É o momento Janis Joplin, em que Lennon pega a voz que tem e canta como se tivesse a voz de  um Howlin’ Wolf. A letra é precisa e cortante. A voz em cada frase parece uma peça de seda se rasgando. Bateria, guitarras e baixo se atropelam uns aos outros mas isso mostra que o objetivo ali é explodir, não fazer uma coisa bonitinha. E foi gravada assim, tudo junto, cheia de erros, no que Ian MacDonald chama de audio vérité.

E pronto, não é mesmo? Treze faixas está de bom tamanho; não seria melhor do que Revolver ou Pepper, mas não é para esse tipo de comparação que as pessoas compõem e gravam músicas.