Existe uma interessante filmografia do romance policial noir filmado por diretores europeus. Em geral, cineastas europeus filmando romances norte-americanos. O Passageiro (Profissão: Repórter) (1975) de Michelangelo Antonioni se baseia num conto de Mark Peploe, “Fatal Exit”, adaptado por ele mesmo.
Peploe seria autor, em seguida, dos roteiros de ótimos filmes
como O Último Imperador e O Céu Que Nos Protege, de Bernardo
Bertolucci.
É um romance policial noir
porque traz algumas características essenciais desse gênero: vazio existencial,
um indivíduo problemático vivendo uma situação limite, a presença do crime e da
violência, uma situação de permanente fuga às cegas.
Por outro lado, não parece um romance noir autêntico por pelo menos duas oposições. A narrativa noir é geralmente um gênero noturno, e o
filme de Antonioni tem 100% de cenas diurnas (só o último plano mostra o crepúsculo);
e o noir é mais identificado com um
ambiente opressivo/decadente urbano; e o filme transita do deserto africano
para ambientes “turísticos” de Munique, Londres, Barcelona, etc.
David Locke (Jack Nicholson) é um jornalista britânico na
África, cobrindo guerrilheiros rebeldes. Está de saco cheio da vida que leva.
No hotelzinho africano remoto onde se hospedou, morre um inglês (Mr. Robertson)
que parece muito com ele. Ninguém ali conhece nenhum dos dois. E Locke pensa:
Que tal se eu trocar as fotos dos passaportes e assumir a identidade desse
cara, deixando todo mundo pensar que eu morri?
A partir daí, o filme se transforma numa espécie de thriller hitchcockiano de perseguição.
Ele não sabia que Robertson era traficante de armas para os guerrilheiros; e
não podia prever que seu colega da BBC e sua esposa iriam perseguir “Robertson”
pela Europa, para saber o que acontecera com “Locke”.
Chamar um filme assim de thriller
é muito inadequado. Filme de Antonioni é sempre um frigorífico de emoções
internalizadas, violência fora de quadro, poucos sobressaltos. Antonioni é o
anti-Hitchcock. É também um anti-Highsmith, porque ninguém pode deixar de
lembrar, vendo a primeira meia hora deste filme, de O Talentoso Mr. Ripley, em que um sujeito aproveita a morte de
outro para assumir sua identidade.
Lembra também O Segundo Rosto
(“Seconds”, 1966) de John Frankenheimer, uma FC sobre mudança de identidade. E o
protagonista do romance O Bigode (“Le
Moustache”, 1986) de Emmanuel Carrère, que ao raspar o bigode começa a se
transformar em outra pessoa e acaba fugindo de Paris para Hong Kong.
Um dos grandes temas do século 20: uma pessoa que quer apagar o
próprio passado e recomeçar do zero.
Antonioni fazia um cinema arquitetônico, onde tudo era concebido
em termos de espaços e de deslocamentos de pessoas nesses espaços. Seus primeiros
filmes têm uma superfície clássica e fria, de enquadramentos perfeitos mas
pouco envolvimento emocional.
Isto se mantém na maior parte de O Passageiro. Aqui, no entanto, o trabalho de áudio é
extraordinário. Ouve-se o que o personagem Locke está ouvindo, até as moscas do
deserto. O envolvimento acústico compensa a frieza do exterior visual.
O filme começa entre as casas caiadas de branco do deserto do
Chade, passa pela exuberância visual de Londres, Munique e Barcelona, e se encerra
entre as casas caiadas de branco do interior da Espanha. As últimas cenas (o
assassinato de Locke/Robertson) acontecem numa pousada modesta diante de uma
praça de touros.
A cena mais famosa do filme, e uma das maiores do cinema de sua
época, acontece no final: é o plano-sequência de cerca de sete minutos em que
Locke deita na cama do quarto e a câmera começa um lento movimento na direção
da janela aberta, passa por entre as grades e faz um giro de 180 graus
mostrando a pousada, agora à distância. Durante esse movimento os assassinos
chegam, entram no quarto e o abatem com um único tiro.
As câmeras 35mm da época eram pesadas, ruidosas, e a execução
deste movimento requereu uma complicada engenharia. Durante aqueles minutos, o
filme “abandona” o personagem à sua própria sorte, sai para a tarde ensolarada
e mostra, à distância (do ponto de vista da Plaza de Toros), a chegada e a fuga
dos assassinos, e depois a vinda das pessoas que descobrem o corpo. Tudo de
forma distanciada, despojada, não-emotiva, com carimbo de Antonioni.
Outra cena, no entanto, é menos falada e me parece tão brilhante
quanto essa. É o momento, aos 21 minutos de filme, quando Locke, tendo
descoberto que Robertson morreu de parada cardíaca no quarto vizinho, começa a
executar a troca de identidades.
Vemos Locke sem camisa, sentado à mesa, trocando as fotos no
passaportes enquanto escuta (em seu gravador de repórter) uma conversa que
gravou dias antes com Robertson. Ouvimos as falas dos dois (o que nos dá a
informação clara da história pessoal de cada um, e de que tinham bebido juntos
no hotel e se conhecido). Então a câmera mostra, sem corte, os dois conversando
do lado de fora da janela.
É um flash-back sem que haja um corte entre a imagem do presente
e a do passado. Um pouco ao estilo de Morangos
Silvestres (1957) de Bergman, mas com uma realização mais complexa, e
brilhante.
Jack Nicholson, um excelente ator mas cheio de cacoetes, tem
aqui um dos seus melhores trabalhos. Contido por Antonioni, ele parece o tempo
inteiro carregado de perplexidade e tensão, a ponto de explodir. Seu jogo de
cena com Maria Schneider funciona porque vemos nele um homem que anda sobre um
fio de navalha, e nela uma garota “moderna”, viajando sozinha por sua conta, e
que se envolve na história dele meio por atração, meio por curiosidade.
Locke joga tudo em sua troca de identidade, e perde. Sua fuga é
como a fuga do personagem do conto “Encontro em Samarra”, que julga estar
fugindo da morte e na verdade está indo ao encontro dela.
Na reta final da fuga inútil, Locke conta para a garota a
história do sujeito cego desde a infância que, depois de adulto, faz uma
cirurgia e recupera a visão. Antes, ele atravessava as ruas com sua bengala, muito
tranquilo. Depois, fica assustado ao ver todos aqueles carros na expectativa,
prontos para avançar. E percebe (só então) que ninguém tinha lhe dito o quanto
o mundo é feio.
A troca de identidades de Locke pode ter sido uma tentativa de
ganhar um ponto de vista diferente sobre o mundo, mas não é o que acontece.
Como tantos outros personagens do romance policial noir, ele parece condenado desde a primeira frase.
Revendo o filme agora em DVD, lembrei que quando o vi pela
primeira vez, escrevi sobre ele no Diário
da Borborema e citei esta estrofe da Invenção
de Orfeu, de Jorge de Lima:
Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.
(VI, Canto V)