domingo, 21 de outubro de 2018

4396) A arte de escrever limpo (21.10.2018)





(Monteiro Lobato)


Um autor francês publicou há poucos anos um livro onde ensinava o leitor a conversar com firmeza sobre um livro qualquer, mesmo sem o ter lido. Entrando no clima, não comprei nem li o livro, que aliás é excelente. E me veio a idéia de fazer um livrinho fino listando (este é o século das listas; o próximo será o das mãos espalmadas na parede da caverna) Os 100 Clássicos da Literatura Universal Que Muito Provavelmente Você Morrerá Sem Ler.

O tratamento um tanto brusco do título não se dirige ao leitor, mas a mim mesmo: “Imbecil, tu passa um mês relendo um livro véi de Ellery Queen que já leu três vezes, enquanto nunca leste Homero, Dante, Stendhal, Gjerellup, Pontopiddan...”

E me veio à mente Camilo Castelo Branco, famosíssimo autor português de quem nunca li uma linha sequer. Camilo é tido como um autor melodramático, prolífico de enredos e visceral de sentimentos, com uma linguagem por vezes desabrida, mas sempre com a voz e a narrativa sob controle. Uma mistura de Balzac e Dumas, com traços de Nelson Rodrigues? Difícil saber sem ter lido.

Quem lia Camilo e gostava, de modo divertido e aparentemente sincero, era Monteiro Lobato, que em 1917 escrevia a seu amigo, o escritor e tradutor Godofredo Rangel:

Sabes o que estou lendo com enorme agrado? Macaulay, o incomparável, e Dickens. As memórias de Pickwick são um modelo de arte. Diz-se lá num capítulo o que os cacetissimos psicólogos de hoje dizem em todo um livro. Acho arqui-preciosa a leitura dos ingleses: livra-nos de absorver a infecção luética dos franceses: galiqueira mental que vai dessorando as nossas letras e fazendo-as um luar da francesa. E, fora dos ingleses, leio Camilo; não passo um dia sem umas páginas.

As cartas de Lobato para Rangel foram coletadas nos dois volumes de A Barca de Gleyre (1944), livro tido como inspirador por muitos autores. Lobato e Rangel tinham uma amizade sólida e bem humorada, compartilhavam muitas opiniões literárias, e na juventude tinham feito parte de grupos literários paulistanos. As cartas de Rangel não foram recuperadas, mas o livro traz o lado lobatiano da correspondência, onde ele fala sobre livros, família, fazenda, correção de estilo, carpintaria literária.

Lobato de novo, em outra carta de 1917, durante a leitura de A Mulher Fatal (1870):

Li ou estou lendo a Mulher Fatal – conheces? Que ótimo está ali o Camilo. Que desprezo de todas as regras da composição francesa! Quando se lhe depara lance de morder num adversário, larga da cena romântica com que está maçando o leitor e desanca. Na Mulher Fatal há isto: “Aí apareceu certa vez um arqui-tolo com grandes foros para maior graduação, etc.” E embaixo da página a nota: “O senhor doutor Joaquim Teófilo Braga, na Visão dos Tempos, 1ª. série.”  Imagine Flaubert fazendo isso em Salambô!

Não lhe perdoavam nada a Camilo, mas com que furor revidava os assaltos! Há dele não sei qual romance que em certo ponto está lamecha demais e “pau”; parece que Camilo mesmo percebe isso e, de repente, sem mais nem menos, larga a história e dá uma surra tremenda nessa mesmo Teófilo Braga. Depois continua a história, como se não tivesse havido coisa nenhuma.

O fato de Lobato se deleitar com isto não quer dizer que seja uma qualidade, mas não há como negar que ele se diverte sinceramente com o que o autor apronta, o que não é estranho, porque eu também me divirto com isso. Mesmo quando Glauber Rocha, no Riverão Sussuarana (1978) deixa vazar para dentro do romance o debate acalorado sobre fatos da sua vida pessoal durante a escritura do livro.

Na verdade, ficamos sabendo mais sobre Lobato quando vemos o que ele elogia nos seus mestres e nos seus contemporâneos:

Ontem li Histórias Sem Data, de Machado, e ainda estou sob a impressão. Não pode haver língua mais pura, água mais bem filtrada, nem melhor cristalino a defluir em fio da fonte. E ninguém maneja melhor tudo quanto é cambiante. A gama inteira dos semi-tons da alma humana. É grande, é imenso, o Machado. É o pico solitário das nossas letras. Os demais nem lhe dão pela cintura. (1915)

Uma das razões para isso é essa elegância que ele encontra em Machado, onde o enxugamento não se faz às custas da expressividade. Lobato admirava Coelho Neto, mas dizia que nele “há 200 mil adjetivos a mais”. E, em carta de 1915: “Estou convencido de que o vocábulo fora de moda, fóssil ou raro, é ‘pedra’ de banana-maçã”.

Em muitas dessas cartas Lobato manifesta uma certa expectativa em descobrir autores de estilo limpo, direto, espontâneo, forte. Sem a adiposidade dos beletristas da época. Daí sua impressão sobre Lima Barreto após as primeiras leituras, dirigindo-se a Rangel, em 1916:

Conheces Lima Barreto? Li dele, na Águia, dois contos, e pelos jornais soube do triunfo do Policarpo Quaresma, cuja segunda edição já lá se foi. A ajuizar pelo que li, este sujeito me é romancista de deitar sombras em todos os seus colegas coevos e coelhos, inclusive o Neto. Facílimo na língua, engenhoso, fino, dá impressão de escrever sem torturamento – ao modo das torneiras que fluem uniformemente a sua corda dágua. Vou ver se encontro um Policarpo e aí o terás. Bacoreja-me que temos pela proa o romancista brasileiro que faltava.

As opiniões de Lobato estão certas ou erradas? O estilo que ele defende é superior ou inferior aos demais estilos? Nada disso importa. Lobato era um indivíduo vigoroso, energético, homem de ação. Páginas e páginas das cartas são dedicadas à descrição de sua rotina na fazenda, consertando telhados, reforçando cercas, cuidando das criações, dirigindo plantios e colheitas, quebrando a cabeça com as burocracias cartoriais da época.

E não é apenas o despojamento que Lobato admira em Camilo, é a mão segura para ousar fazer tudo que ousa:

O mérito de Camilo está em que nos ensina todas as acrobacias da língua, e nos mostra todas as “bravuras” e ainda nos diverte. Quando se põe a troçar é enorme! Quando vira palhaço e vai descambando para o reles, sai-se com um disparate de gênio e salva tudo... Em matéria de diálogos de gente do povo, não sei de nada igual. (1916)

A Barca de Gleyre foi um dos títulos citados por Guimarães Rosa num questionário, quando lhe pediram uma lista de títulos de autores brasileiros que o haviam influenciado. Essa exuberância devoradora de leitor, esse gosto em se deixar arrebatar por um autor que entusiasma, parecem ter passado para Guimarães Rosa. Mesmo que os respectivos gostos fossem diferentes, a atitude para com a literatura era parecida.

Não muito diferente da de Ariano Suassuna, que dizia:

“É melhor estudar um só livro, qualquer que seja ele, com ‘raça’, alegria e entusiasmo, do que estudar todos os livros do mundo friamente.  Porque em tais casos um livro, mesmo menor, examinado e reexaminado em todas as suas implicações, aplaudido aqui e ferozmente negado ali, pode ser, para o jovem que o leia, o que foi, para mim, o ‘Assim Falou Zaratustra’ de Nietzsche, na adolescência: a descoberta da ardente e duradoura alegria do conhecimento”.
(Ariano Suassuna, Iniciação à Estética, pag. 13)