sexta-feira, 5 de outubro de 2018

4391) Eu me lembro XII (5.10.2018)



1
Eu me lembro das “Espirais Sentinela”, aquelas verdinhas, de espantar muriçocas. Elas vinham em envelopes de papel com as instruções do lado de fora, e vinham em forma de duas espirais encaixadas dentro uma da outra. Eram quebradiças como biscoitos; um grande teste de coordenação motora e sintonia fina digital era tirar uma espiral de dentro da outra sem quebrá-las, apertando-as em direções opostas. Depois eram encaixadas num suportezinho de metal cuja ponta entrava no “olho” da serpente, pois o formato da espiral era o de uma serpente cuja ponta do rabo era lá-fora e no centro terminava na “cabeça”, com um pequeno orifício onde entrava a pontinha metálica do suporte. A sentinela queimava lentamente ao longo da noite, soltando um cheiro acre com o qual a gente se acostumava sem muito esforço, como ocorre com cheiro de um móvel velho ou de uma parede úmida; e de manhã a gente acordava e corria para ver os pedacinhos de cinza cor de flicts caídos no chão, reproduzindo toscamente a espiral sólida original.

2
Eu me lembro de uma mendiga que pedia esmolas quando eu tinha dez ou doze anos. Ela ficava parada, ali perto da catedral, ou na calçada da Maciel Pinheiro, olhando para a frente, apenas com a mão estendida, sem se mexer, sem falar nada. Tinha uma deformação que não sei se era doença ou um acidente, que tinha destruído a parte inferior do rosto dela, uma espécie (não sei direito, eu afastava a vista) de cicatrizes de onde brotavam dentes em diferentes direções. Ela usava sempre um chapéu de palha, era uma criatura inofensiva, sofrida, silenciosa, mas vê-la era uma coisa que fazia uma punção na minha manhã de sol.

3
Eu me lembro que quando eu tinha vinte e poucos anos estava numa festa lá no Centenário, o antigo bairro de Casa de Pedra, a cerveja rolou solta, eu enchi a cara, e depois da meia-noite empreendi o retorno a pé de volta para o Alto Branco, o lar paterno, “o meu primeiro e virginal abrigo”, diria o poeta. Lembro que vim por ali, uma noite escura e silenciosa, e ao chegar na esquina da Rua da Independência com a Nilo Peçanha subi por esta, cruzei a Praça Félix Araújo trocando as pernas, a cabeça zunindo de álcool, mas mantendo a moral. O importante é manter a moral. Quando cheguei na Rua João Pessoa a subida da ladeira cobrou seus dividendos e eu sentei no batente de uma loja, na rua escura e silenciosa. Séculos depois alguém bateu no meu ombro e eu abri os olhos para ver um carro da polícia todo piscando, um cara parado junto dele, e outro debruçado sobre mim, dizendo, “Ei véi, tás bom? Tás vivo?”. Eu fiquei de pé, me apoiando na parede, e disse: “Sim, sim, tou, parei só pra descansar.” Ele me olhou a cara, os olhos: “Tu mora aonde?”  Apontei a direção: “No Alto Branco.”  Ele disse: “É bom tu ir pra casa, não fica aqui não.”  Eu dei alguns passos na direção do carro e ele me deu um empurrão, meio de farra: “Oxente, tá pensando que a gente vai lhe levar, é? Vai a pé, rapaz, vai curtir tua cana”. Eu fiz um sinal de tudo-x e cheguei em casa a pé.

4
Eu me lembro de um amigo meu que morava perto da subida para o Alto Branco e que dava umas festas à fantasia. Os pais viajavam algumas vezes por ano, em passeios de casal; e ele e os irmãos ficavam por donos da casa. Todos na faixa dos vinte e cinco anos, o que nunca é bom sinal. Uma vez a avó materna estava passando um tempo lá e o jeito foi levá-la para o quarto de empregada, deixar tudo confortável e trancá-la ali, para que o barulho da festa não a incomodasse, e de fato ela só foi extraída do claustrofóbico aposento dois dias depois, quando os pais voltaram da viagem e perguntaram pela pobre.

5
Eu me lembro de uma madrugada em que saí num fusca com dois amigos, e algum de nós três estava levando no carro uma imensa cabaça decorada de enfeites de decapê, uma volumosa e leve peça de artesanato que estava sendo conduzida para uma exposição, ou sendo devolvida dela, mas nesta noite cismamos de fazer serenatas para as respectivas namoradas, e de repente estávamos debaixo de uma chuvinha irritante, num bairro remoto, todos três caindo de bêbados, eu tocando violão e cantando abrigado embaixo de um telheiro na parede de uma bodega, e eles dois no meio da rua, abraçados ao enorme cabaço, um de cada lado, dançando valsa sob a chuva enquanto eu cantava: “E não há nada pra comparar / para poder lhe explicar / como é grande / o meu amor / por você...”  É uma canção aconselhável para momentos assim: permite elevar a voz e trazê-la pra bem baixinho, conforme necessário; tem acordes simples, só erra quem quiser; e a letra sempre rende dividendos psicológicos. Voltamos ensopados de chuva dos pés à cabeça.

6

Eu me lembro que quando eu era menino meu pai torcia pela candidatura de Newton Rique a prefeito, e minha mãe pela de Severino Cabral. A gente morava na rua Miguel Couto, e oceanos de gente passavam diante das nossas janelas, rumo ao Açude Velho, rumo aos terrenos vazios em volta, onde se armavam comícios que ninguém esquece. Lembro que os partidários de Newton chamavam a turma de Cabral de “pé-de-chumbo”, e os outros retrucavam chamando-os de “mão de seda”. Uma imagética que ainda não se invalidou. E quando a gente ia para os comícios de Newton, no momento culminante da noite, quando ele chegava finalmente ao microfone para falar, ele começava assim: “Campinenses amigos...”  E esse bordão produzia uma explosão de gol, era uns cinco minutos de orquestra em brasa e com Vassourinhas falando no centro.