Por que todo Manual de Estilo nos aconselha a eliminar
adjetivos? Um adjetivo é um atalho, um
recurso que economiza (ao autor e ao leitor) esforço mental. É uma informação que o autor entrega ao
leitor de graça, para absorção instantânea, poupando a este o trabalho de
pensar. O autor preguiçoso escreve:
“Fulano de Tal era um funcionário honesto, esforçado, mas pouco
imaginativo”. Esses adjetivos lhe poupam
o trabalho de demonstrar de modo concreto essas qualidades abstratas. E o leitor preguiçoso aceita essas definições
fornecidas a priori, porque elas o
livram de acompanhar uma demonstração e tirar conclusões próprias.
Há um princípio estilístico segundo o qual é preciso
“mostrar, em vez de apenas dizer”. Em
vez de informar ao leitor alguma coisa a respeito de um personagem ou de uma
situação, é preferível fornecer as pistas para que ele deduza a
informação. Se ele o consegue, esta
pequena descoberta cria uma parceria entre autor e leitor. O leitor murmura “ah, sim, entendi”, e dá uma
piscadela cúmplice para o autor.
“Felisberto abriu a porta e se deparou com um homem mal
vestido”. É uma coisa. Mas se dizemos:
“Felisberto abriu a porta e se deparou com um homem vestindo um terno cheio de
remendos e calçando sapatos surrados”, aí sim, é o leitor quem faz cair a
ficha, quem chega à conclusão.
A maioria das descrições de características físicas pode ser
enriquecida através desse método indireto de exposição. “Antonio espremeu-se para dentro do carro, e
o banco afundou sob seu peso” é melhor do que “Antonio, um sujeito corpulento,
entrou no carro”. Em vez de dizer “uma
bela mulher de vestido preto cruzou o saguão” pode-se dizer “uma mulher de
preto cruzou o saguão, atraindo os olhares masculinos à sua passagem”. Ou algo assim.
Há sempre uma maneira concreta de mostrar algo, em vez de
apenas dizer com um adjetivo. “O chão
estava molhado” é mais vago, menos satisfatório do que “o chão mostrava poças
formadas pela chuva da véspera”. Nesses
casos, é sempre melhor uma imagem visual complexa, mesmo que de extensão mais
longa. Parece uma perda, uma prolixidade
desnecessária; mas um escritor decide o tempo inteiro, baseado na intuição, o
que funciona melhor em cada frase. Às
vezes é melhor a concisão abstrata de um adjetivo, para ganhar tempo. Às vezes é preferível a descrição concreta,
mas mais longa, de uma característica que ele quer transmitir.
Adjetivos que exprimem estados emocionais podem, em geral,
ser substituídos por uma descrição de ação ou comportamento. “Fulano levantou-se furioso e saiu da sala”
pode virar “Fulano levantou-se empurrando a cadeira para trás, e saiu da sala
sem uma palavra, batendo a porta com força”. O primeiro exemplo é uma simples
frase. O segundo equivale a uma imagem,
e tem mais força do que o mero adjetivo “furioso”.
Existe em alguns autores a tentação (nem sempre bem
sucedida) da adjetivação incomum, inesperada.
Um adjetivo pode ganhar expressividade quando é usado de uma maneira à
primeira vista imprópria, mas que lhe dá um sentido metafórico. “Ela o fitou com olhos ínfimos”. “Fulano
sentiu-se com a mente despetalada”. “As
cortinas do teatro se abriram, ambiciosas”.
“Ele tinha um olhar pegajoso”.
“Maria vivia num apartamento com dois gatos faraônicos”. “Ao sair, encontrou no corredor um sujeito de
crânio liso e óculos blindados”.
Quais dessas adjetivações funcionam? Difícil saber. Expressões assim estão sempre
no limite entre o incomum e o ridículo.
O conto “As Ruínas Circulares”, de Jorge Luís Borges, começa com uma
frase famosa: “Ninguém o viu desembarcar na noite unânime”. Borges comentou certa vez: “Isto mostra
apenas como naquele tempo eu escrevia de maneira irresponsável”.
Se um substantivo deve vir acompanhado de mais de um
adjetivo, é melhor que estes cubram áreas totalmente diversas, por exemplo, um
se refira a uma característica física, e outro a uma característica de
temperamento. “Era um sujeito magro e
impaciente” é uma descrição mais breve e mais rica do que “era um sujeito alto
e magro” ou “era um sujeito falador e impaciente”.
Deve-se evitar a todo custo o adjetivo eternamente grudado a
uma expressão específica. É um confortável vício da nossa imprensa: “tórrido
romance”, “carreira meteórica”, “discurso inflamado”, “sol abrasador”, “corpo
escultural”... Clichês assim são como as
baratas, impossíveis de extinguir, mas podemos pelo menos mantê-los fora da
nossa casa.
Utilizado sem critério, o adjetivo é uma moeda sem lastro.
Só tem valor quando o texto produz uma impressão de realidade compartilhada
pelo leitor, recriada por este no instante da leitura. Quando escrevemos: “A sala estava
desarrumada”, é como se impedíssemos que o leitor olhasse pela porta e
constatasse o estado da sala; como se o obrigássemos a acreditar na nossa
palavra e aceitar o nosso julgamento.
Se, por outro lado, escrevemos: “Na sala viam-se copos sujos
por sobre os móveis, cinzeiros cheios, peças de roupa espalhadas pelo chão”,
autor e leitor estão como que vendo juntos o mesmo quadro, ao mesmo tempo, e
talvez chegando juntos à mesma conclusão.
Adjetivo deve entrar na frase para dar-lhe peso, e não para
enfraquecê-la. Adjetivo não é sinal de
concisão. Em grande parte dos casos é
sinal de preguiça, de um autor que quer resolver rapidamente um problema
criativo complexo. Ao substituir um
adjetivo (ou um advérbio tipo “alegremente”, “rapidamente” etc., aos quais
também se aplica quase tudo que foi dito aqui) por uma indicação concreta, o
autor propõe uma fugaz parceria criativa, e o leitor inteligente agradece.
(Uma versão ligeiramente
diferente deste artigo foi publicado na revista Língua Portuguesa, da
Editora Segmento (São Paulo), abril de 2009)