Um
dos elementos simbólicos recorrentes do Grande
Sertão: Veredas é a “canção do Siruiz”, uma cantiga entoada pelos jagunços,
que não sai da memória de Riobaldo, e é evocada várias vezes por ele ao longo
da narrativa.
A
cantiga é composta das estrofes abaixo, que na minha opinião são uma mistura de
versos anônimos e versos de Rosa:
Urubu é vila
alta,
mais idosa do
sertão:
padroeira,
minha vida –
vim de lá,
volto mais não...
Vim de lá,
volto mais não?...
Corro os dias
nesses verdes,
meu boi mocho
baetão:
buriti – água
azulada,
carnaúba – sal
do chão...
Remanso de rio
largo,
viola da
solidão:
quando eu vou
p’ra dar batalha,
convido meu
coração...
Esta
é a versão que é citada pela primeira vez no livro (págs. 114-115; todas as
citações são da 2ª. edição, 1958).
Quando
acontece isso? Riobaldo está recordando a primeira vez que avistou Joca Ramiro
(seu futuro chefe guerreiro; e pai de Diadorim), bem como os lugares-tenentes
deste, o Ricardão e o Hermógenes. Os futuros vilões do romance.
É
um episódio de quando Riobaldo, menino, já está morando na fazenda de seu
padrinho Selorico Mendes (que depois entendemos ser seu pai biológico). Batem à
porta, de madrugada. Riobaldo pula da cama, mas o padrinho já está botando para
dentro de casa meia dúzia de homens encapotados, de chapelões desabados no
rosto, armas, esporas tilintando. Jagunços em pé de guerra.
O
padrinho manda fazer café, e começam as conversas. Joca Ramiro e os jagunços
querem abrigo e esconderijo para a tropa, por um dia. Começam a ser tomadas
providências, e o menino Riobaldo, olhos muito abertos, não perde nada daquilo.
Vai servir de guia; e caminha na escuridão com os homens, até onde está a
tropa.
De repente, de
certa distância, enchia espaço aquela massa forte, antes de poder ver eu já
pressentia. Um estado de cavalos. Os cavaleiros. Nenhum não tinha desapeado. E
deviam de ser perto duns cem. Respirei: a gente sorvia o bafejo – o cheiro de
crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do
sertão. (p.
113)
A
tropa é maciça, escura e surdamente ruidosa, faz um barulho “que nem o dum grande rio”. O menino se
impressiona, vê mais os cavalos que os homens, aos poucos distingue no escuro
os chapéus, os rifles. E começa a guiar os cavaleiros rumo ao arrancho; e é aí
que o jagunço Siruiz canta aqueles versos.
Um
dado interessante da canção do Siruiz é que no romance ela geralmente está
associada às enumerações dos jagunços. Em termos de roteiro de cinema, ela
seria a “Canção Tema da Horda Guerreira”. Basta comparar:
Anos
depois, nas págs. 165-166, vem a enumeração dos guerreiros no parágrafo
começando por “Permeio com quantos,
removido no estatuto deles...” E
logo depois, pág. 168, surge o refrão da cantiga, quando Riobaldo descobre, no
susto, que Siruiz foi morto em combate. Ensinam-lhe então
...outra, que
era cantiga de se viajar e cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida:
Olerereeêe,
bai-
ana...
Eu ia e
não vou mais:
Eu fa-
ço que vou lá
dentro, oh baiana,
e volto
do meio
p’ra trás...
E
é com esse refrão que Guimarães Rosa retoma o tema recorrente de seu primeiro
livro, Sagarana, a ida e a volta, “for a walk and back again” como diz uma
das epígrafes da obra.
Note-se
que existe uma melodia subentendida, a meu ver, indicada pelo escritor com
essas quebras de palavra entre uma linha e outra. Um recurso frequente de
letristas querendo deixar claro um salto melódico, um hiato, uma quebra
qualquer na dicção oral. (Em outras edições que consultei, essa disposição
gráfica é modificada; com alguma perda, acho.)
E
observe-se também que o “oh baiana” é responsório tradicional de um milhão de
cantigas da tradição oral. (Quem não lembra Alceu Valença – “Pois eu tenho um
espelho cristalino, oh baiana... / Que uma baiana me mandou de Maceió, oh baiana...”)
(desenho de Guimarães Rosa, com sugestões para o ilustrador Poty)
Outra
enumeração de peso, a mais longa do livro, é a que surge nas páginas 301-303, a
partir do parágrafo “Aí o senhor via os
companheiros...”. São dezenas de nomes, numa verdadeira enumeração homérica,
que a crítica já comparou com o famoso “Catálogo das Naves” do Livro 2 da Ilíada.
E
antes de recordar cada nome (seguido de uma frase breve retratando o antigo
companheiro), Riobaldo (pág. 300) conta que num momento de solidão lembrou da
cantiga de Siruiz e compôs para a melodia dela esses versos “sem razoável valor”:
Trouxe tanto
este dinheiro
o quanto, no
meu surrão,
p’ra comprar o
fim do mundo
no meio do
Chapadão.
Urucuia – rio
bravo
cantando à
minha feição:
é o dizer das
claras águas
que turvam na
perdição.
Vida é sorte
perigosa
passada na
obrigação:
toda noite é
rio-abaixo,
todo dia é
escuridão...
Não
é casual a menção ao “fim do mundo”. A esta
altura, os crimes imperdoáveis já aconteceram; e o bando está em perseguição
aos “hermógenes”, com sede de vingança.
E
há mais uma enumeração, à pág. 511, quando os bandos convergem um sobre o
outro, preparando a batalha final do Paredão. Riobaldo volta a lembrar, nome
por nome, os jagunços, a quem chama comovido de “irmãos meus”, “meus filhos”,
no parágrafo que se inicia com “Todos. E,
todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal...”
Mas
a batalha final se aproxima, e Riobaldo sabe disso: “E, veja, se vinha, eu comandei: – “É guerra, mudar guerra, até quando
onça e couro... É guerra!...” E ele recorda de novo a canção do Siruiz:
Olererê
Baiana...
Eu ia
e não vou
mais...
Eu faço
que vou
lá dentro, ó
Baiana:
e volto
do meio
p’ra trás! (pág. 513)
Como
se a cada vez que Riobaldo “passasse as tropas em revista” na memória ouvisse
de novo a canção daquela madrugada em que ele viu pela primeira vez o seu
destino futuro, a vida de jagunço, e o corte mortal entre Joca Ramiro e o
Hermógenes.
A
canção surge num momento mágico, de infância. O menino é tocado pela dimensão
épica e cavalariana da vida jagunça. E sempre que a tropa desfila na sua
lembrança, retorna a cantiga; e quando ele evoca a cantiga, esta traz à tela da
memória a tropa.
A
letra da canção traz camadas superpostas de significado. O “faço que vou, mas
não vou” é o drible, é o negaceio, a quebrada inesperada com que o jagunço
ilude perseguidores.
Ao
mesmo tempo, é um aviso inconsciente de Riobaldo de que ele tantas vezes larga
uma missão pela metade, desiste ou hesita na hora de definir.
Também
é uma espécie de Paradoxo de Zenão: antes de chegar ao ponto X eu tenho que
regredir a um ponto anterior, e assim sucessivamente. Uma armadilha lógica que
evoca também a armadilha social em que o jagunço Riobaldo está preso: eu quero
casar com uma mulher e ser fazendeiro em paz, mas antes eu tenho que matar
algumas dezenas de criminosos que mataram meu chefe.
Naquele
trecho da pág. 168, quando ele descobre que Siruiz morreu, ocorre-lhe que agora
aquela canção inicial está sendo preservada nele, Riobaldo. Mais do que as
próprias canções dele próprio:
Pois foi – que
eu escrevi os outros versos, que eu achava, dos verdadeiros assuntos, meus e
meus, todos sentidos por mim, de minha saudade e tristezas. Então? Mas esses,
que na ocasião prezei, estão goros, remidos, em mim bem morreram, não deram
cinza. Não me lembro de nenhum deles, nenhum. O que eu guardo no giro da
memória é aquela madrugada dobrada inteira: os cavaleiros no sombrio amontoados,
feito bichos e árvores, o refinfim do orvalho, a estrela-d’alva, os grilinhos
do campo, o pisar dos cavalos e a canção de Siruiz. Algum significado isso tem?
Porque
o terceiro sentido, mais psicológico, mais metafísico, é o da ida e volta da
memória em si. Tema evocado por Ariano Suassuna quando chama o seu próprio
“Grande Sertão” de Romance da Pedra do
Reino e o Príncipe do Sangue de Vai e Volta. A memória indo e vindo, como
lançadeira de tear, para não deixar que as vidas (as canções) se percam.
(Aqui, uma gravação da Canção
de Siruiz, musicada por Wilson Dias:)