Eu imagino às vezes que existe uma seita no norte da
Mongólia para quem o inferno consiste em não se ter consciência dele.
Explicando melhor: o inferno não é um lugar diferente da
Terra. É a ilusão de estar vivendo ainda, no mesmo mundo onde existia antes de
morrer. Uma ilusão sádica, que Swedenborg anteviu ao seu modo, num texto
recolhido na Antologia da Literatura
Fantástica, de Borges, Casares & Ocampo:
Os anjos me comunicaram que quando Melanchton faleceu foi-lhe destinada
no outro mundo uma casa ilusoriamente igual à que tivera na terra. (Ocorre o
mesmo com todos os recém-chegados na eternidade, e por isso acreditam que não
morreram.)
(Swedenborg, “Um teólogo na
morte”)
A pessoa morre durante o sono, mas em espírito acorda na
manhã seguinte e tudo lhe parece ser a continuidade daquela vida anterior.
Só que a pessoa agora está (para usar a linguagem
cibernética) rodando numa simulação do tempo que viveu na Terra. Um simulacro
no qual ele não percebe nenhum erro de continuidade.
Seria de fato interessante que não existisse o Inferno
convencional (fogo, tridentes, demônios sádicos, etc.). O morto teria que
prosseguir vivendo.
Ou, melhor ainda: voltaria ao instante do
nascimento. Teria que repetir tudo, passar
por todas as mesmas circunstâncias de bebê, criança, jovem, etc. E poderia haver dois modos de replay: modo
amnésico e modo aprendizado.
Não estou delirando – tem um conto de Machado de Assis
que consiste exatamente nisso: “A Segunda Vida” (em Histórias Sem Data, 1884). Um tal de José Maria afirma ter morrido
e nascido de novo, com memória da vida passada; isto o levou a, da segunda vez,
ter uma vida muito pior do que a primeira, porque a memória o deixava receoso
de cometer erros. Com isso acabou privando-se de uma infinidade de coisas e
cometendo a mesma quantidade de erros, só que de outra espécie.
Este seria o “modo aprendizado”, a chance de fazer alguém
consertar, no pós-vida, as mancadas que deu.
O “modo amnésico” (o cara nasce de novo, mas não lembra
de nada) coloca um problema filosófico: a gente não lembra do que aconteceu e
pensa que esta vida aqui é a primeira e única. O que pode ser o presente caso. Quantos milhares de vezes não já terei tentado
escrever o presente artigo?
Podemos imaginar uma seita para quem o Paraíso não
precisasse ser o Paraíso convencional (nuvens, asas, harpas). Seria um Paraíso
bem parecido com a vida que a pessoa desfrutou na Terra. Como a pessoa fez por
merecer algum tipo de recompensa, essa pós-vida se assemelharia à vida física,
seria quase um prolongamento benigno dela.
A pessoa fica vivendo numa casa parecida com a sua, e acontecem-lhe
coisas parecidas com o que na vida em carne e osso lhe provocaram boas reações;
e la nave va. Esse Paraíso seria uma
mistura de “volta sentimental” e “amnésia protetora”. Uma dona de casa viverá
uma rotina de refeições que dão certo e faxinas leves; um Hell’s Angel terá
aventuras ruidosas e inconsequentes.
O Inferno desse mundo seria, simetricamente, uma vida
onde tudo acontecia da maneira errada. Doenças, dívidas, contratempos,
desemprego... O sujeito não entende (ele pensa que ainda está na vida terrena)
por que seu time sofre derrotas tão acachapantes para equipes menores, ou
porque a mulher o trai, ou por que o patrão no escritório sabota seus projetos
e retém seu contracheque.
O cidadão afrouxa a gravata, pára pra tomar um cafezinho
no bar da esquina (o café é frio, com gosto de rato) e pensa: “Porra, que
inferno, o que foi que eu fiz pra ter que passar por isso tudo?”. E não saberá
o quanto está perto da Verdade.