Eu não sou muito acompanhador dessas efemérides, Dia disso, Dia daquilo. Nem meu aniversário eu comemoro. (Não, não há problemas, nem teorias justificatórias. Questão de hábito, apenas.)
Como hoje está todo mundo nas redes sociais botando fotos
e contando episódios (alguns muito bonitos) sobre seus progenitores, lembrei de
postar algo sobre Seu Nilo. O pobrema é que todo ano tem essa cerimoniazinha e
não quero ficar repetindo as postagens dos anos passados.
Vai daí, reproduzo abaixo um trecho do Capítulo 4 (“Deixa
a vida me levar”) do meu romance recém-lançado Bandeira Sobrinho – Uma Vida e Alguns Versos (Fortaleza: Editora
IMEPH, 2017). É um retrato 3x4 daquela figura indescritível. (O capítulo
prossegue falando da minha mãe, mas quem quiser ler vai ter que encomendar o
livro no link abaixo.)
-oOo-
(...)
Algum tempo depois dessa cantoria
eu passei uns dez dias em Campina (eu já morava em Salvador, na época). Estava
surgindo a possibilidade de ir morar no Rio, porque Elba Ramalho tinha gravado
algumas músicas minhas que estavam rendendo direitos autorais. Ir morar no Rio!
Eu estava morrendo de medo, se bem que hoje percebo que aquilo não era medo
coisa nenhuma, era vontade.
Uma noite minha mãe (quando eu
vinha passar uns dias em Campina eu ficava na casa dos meus pais, no bairro do
Alto Branco) me disse que ia fazer um bolo porque era aniversário de alguém da
família, algum parente que vivia longe; mas tudo na vida dela era pretexto para
bolo, etc. E ia fazer um jantar mais caprichado.
Às oito da noite, eu liguei de um
orelhão, perto do Bar de Seu Manu.
– Bença, mãe.
– Deus lhe abençoe. Tá aonde?
– Tou aqui perto do Edifício Rique.
Tem bolo mesmo?
– Oxente, eu não disse que tinha? Tá
pronto. Vem jantar?
– Acho que vou. Seu Nilo tá
acordado?
– Tá por aqui, doido que você
chegue pra conversar.
– Eu vou levar um amigo meu, Bandeira
Sobrinho, aquele cantador da Rádio Borborema.
– Traga, traga mesmo. Tem bolo, tem
café, mas se quiserem cerveja vão ter que trazer.
– Deus me livre, eu de
segunda-feira pra cá tô arripunando cerveja.
Ela deu aquela risada longa dela –
“ra-rraaaai!...” – e eu desliguei.
Foi muito bom ter levado Bandeira,
porque ele e meu pai sentaram no terraço e daí a pouco se envolveram numa
discussão sobre formas de soneto, onde cada qual procurava lembrar mais
variantes do que o outro.
Para os que não conheceram meu pai,
o jornalista e poeta Nilo Tavares, basta fazer uma lista breve:
1)
Era
baixinho. Não sei a medida da altura dele. Era charadista e enigmista, membro
da TerNor (Tertúlia Nordestina), colaborador de incontáveis revistas Brasil
afora, com o pseudônimo de Pequeno Polegar. Uma vez, já morando no Rio, fui ao
Círculo Enigmístico Carioca, perto da Av. Rio Branco, pesquisar uma matéria pra
TV, e quando falei que meu pai tinha escrito um Dicionário do Que (locuções começadas com a expressão “Que...”), o
cara foi lá dentro e trouxe um exemplar encadernado.
2)
Gabava-se
de ser capaz de passar 24 horas ininterruptas recitando sonetos de autores
brasileiros, inclusive dele mesmo, mas mesmo na Paraíba nunca apareceu homem
nenhum que ousasse pegá-lo na palavra.
3)
Era do
Recife e minha mãe era de Coxixola-PB (“A Cidade Que Precisa Dizer Que
Existe”). Conheceram-se em Angelim (PE), casaram e vieram morar em Campina
Grande, onde nascemos os quatro filhos: Clotilde, eu, Pedro e Inês.
4)
Nunca foi
apologista, mas como trabalhou na Rádio Borborema conhecia os violeiros que
passaram pelo Retalhos do Sertão, um
dos mais tradicionais programas de cantoria no rádio. Para os cantadores mais
antigos, como Zé Gonçalves, eu era “o filho de Nilo”.
5)
Torcia por
três times: o Sport Club do Recife, na cidade onde se criou; o Treze Futebol
Clube, na cidade onde iniciou sua vida de chefe de família; e o Flamengo, no
seu país, que era feito em grande parte de jornais impressos e de emissoras de
rádio.
6)
É simbólico
da nossa relação que em 1975, quando o Flamengo foi a Campina jogar com o
Treze, eu perguntei: “O senhor acha que a gente ganha?”, e ele respondeu: “E tu
acha que a gente vai perder para um time fraco como o do Treze?”, e eu disse,
“Peraí, Seu Nilo, a gente é quem, no
seu vocabulário?” Foi um momento judaico-cristão em nosso relacionamento.
7)
Mas isso
prova apenas que ele era mais romântico do que eu.
Em 1980 meu pai teve o que chamamos
na época de uma “trombose”, ficou com um lado do corpo meio avariado, precisou
fazer fisioterapia. Tinha que ficar apertando uma bolinha que de vez em quando
escapava, e todo mundo corria a devolvê-la. Fisioterapia fica mais interessante
quando vira uma diversão para todos os envolvidos, não é mesmo? Uráy, o antigo
zagueiro do Treze, ia lá em casa para ajudá-lo nos exercícios, ia para dar uma
força, só pela lembrança da convivência.
Foi se recuperando aos poucos, mas
como deixou de trabalhar, sua diversão principal, além de ler, de decifrar e de
compor charadas, e de ver TV, era esperar visitas que sentassem com ele no
terraço da nossa casa na colina do Alto Branco. Ficava ali e via Campina Grande
estendida horizontalmente à frente, como num filme de 70mm. Gostava de receber
gente e conversar sobre as coisas boas da vida.