sábado, 7 de julho de 2018

4364) Outra vez Matraga (7.7.2018)



Sagarana foi escrito no Brasil, reescrito na Alemanha, quando Guimarães Rosa era diplomata. Ele próprio relata, num texto importantíssimo escrito para os arquivos do jornalista João Condé, e recolhido por sua filha Vilma Guimarães Rosa em Relembramentos (Nova Fronteira, 1983):

O livro foi escrito – quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas – em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).

Como receita não pode haver melhor. Basta apenas lembrar que a primeira versão é a que perdeu um concurso literário em 1938, porque Graciliano Ramos votou contra. E Rosa, depois, deu-lhe razão: o livro ainda estava “verde”.

Comentando o livro do colega, Graciliano (num texto recolhido em Em Memória de João Guimarães Rosa, José Olympio, 1968) dizia, da nova feição do livro Sagarana em sua primeira edição oficial:

Eliminaram-se três histórias, capinaram-se diversas cousas nocivas. As partes boas se aperfeiçoaram: “O Burrinho Pedrês”, “A Volta do Marido Pródigo”, “Duelo”, “Corpo Fechado”, sobretudo “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, que me faz desejar ver Rosa dedicar-se ao romance. (p. 44)

Guimarães Rosa afirmou que todos os contos desse livro buscavam uma forma específica de expressão, que ele foi descortinando aos poucos, conquistando por todos os flancos, e que surgiu pronta na derradeira história. “Matraga”, o último texto do primeiro livro, seria, por este julgamento, o primeiro texto a empregar todos os recursos de que o escritor já se sentia capaz.

A história tem um desenho simples. Nhô Augusto Esteves é um homem sem empatia, que pratica maldades cercado de capangas. Trata com desdém a esposa e a filha, vive raparigando, bebendo. Até que um dia se mete com um coronel poderoso, leva uma surra homérica, é dado como morto.

Oficialmente desaparecido, é recolhido por um casal pobre, tem uma sofrida convalescença durante a qual torna-se religioso, rezador, trabalhador. O oposto completo do que tinha sido antes. Com o casal de pretos velhos, emigra, vai morar num povoado distante; e os anos se passam.

Na sequência final, testemunhando uma injustiça de um chefe jagunço contra uma família de pobres, volta a ser o valentão que fora e volta a pegar em armas, mas agora em defesa de um ideal nobre.


Robert Heinlein gostava de resumir numa frase os enredos básicos das narrativas de ficção (não apenas da ficção científica). Um dos seus resumos favoritos era: “A man learns better”, um cara aprende uma lição. Ou seja: um sujeito obstinado, cascudo, cheio de si, sofre uma rebordosa. Essa crise de grandes proporções pulveriza suas certezas e o obriga a se recompor – mas agora em outros termos. Obriga-o a se recriar.

Essa é a narrativa básica de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”.

Como bonecas russas umas dentro das outras, vemos que o Augusto rezador, pequenininho, já estava dentro do Augusto valentão. Vinha desde a infância, através da avó que o encorajava a rezar. Quando o valentão entra em crise, vai sendo recoberto por fora pela capa de um novo Augusto, que repete fanaticamente o mantra ensinado por um padre: “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso!”

Quem assistiu a magnífica adaptação de Roberto Santos para o cinema, de 1966, deve lembrar o ator Leonardo Vilar (em sua hora e vez, e melhor momento da carreira) orando essa pequena prece até gritá-la furioso.

E o que começa a brotar ali é a síntese final entre o Augusto brabo e o Augusto manso e humilde de coração. Nesse momento de conversão na marra, ele brada a frase que ficou famosa:  “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...”.

O primeiro encontro com os jagunços comandados por Joãozinho Bem-Bem ajuda a ressurgir em sua alma a força masculina, yang, que estava adormecida. Ele recorda seus tempos de brigador, dos quais ao mesmo tempo se envergonha e sente saudade, como quando se lamenta junto à preta velha que o adotou:

E eu já fui zápede, já pus fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em que enfrentei uns dez, fazendo todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada, no Sergipão Congo, mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro matador!... E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu tirei de casa, semana em antes de se casar?!...


Os jagunços vão embora mas o olho clínico de Joãozinho Bem-Bem o faz convidar Nhô Augusto para juntar-se ao bando, o que ele agradece mas recusa. Ainda não está pronto.

O tempo vai passando e um dia ele acorda vendo as maitacas em migração, aves ruidosas nas quais ele vê um sinal. Que está na hora de partir. Para onde? Ele não sabe.

Sagarana é um livro onde os personagens estão o tempo todo em movimento, viajando, passeando, migrando, fazendo aquelas intermináveis viagens a burro, a pé ou a cavalo, ao longo das quais acontecem variadas coisas e se encontram personagens aleatórios. Nhô Augusto deixa-se conduzir pelo jumentinho, deixando que ele decida:

E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado ouvir:
– “Qualquer paixão me adiverte...” Oh coisa boa a gente andar solto, sem obrigação nenhuma e bem com Deus! (...)
E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito asno escolhesse o caminho.  (...) Mas, somadas as léguas e deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas voadoras. (...)
– Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos indo é com Deus!

E a esta altura um Deus está conduzindo Matraga, por linhas tortas, para sua hora e vez, para o encontro com seu destino. Esse Deus o leva de volta aos arredores do arraial do Murici, onde a história começou. E é um Deus diferente do Deus de todo mundo. Matraga transformou-se num ronin, um samurai errante, sem tropa e sem patrão. E o seu deus é um Deus guerreiro:

...num sonho bonito, no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo tudo.

Reencontrando os jagunços, Nhô Augusto reata por minutos a amizade mas logo se pôe em confronto, para impedir que Joãozinho Bem-Bem, que quer vingar um capanga morto à traição, cometa uma crueldade contra uma família indefesa. Trava-se o combate, e o narrador onisciente já começa a transferir a história para o plano da lenda futura, ao usar o ponto de vista do povo que assiste tudo:

E aí o povo encheu a rua à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em molambos de roupas pendentes.

E ele garante que a história seja bem contada, trazendo um figurante crucial, “o João Lomba, conhecido velho e meio parente”, que reconhece Nhô Augusto, ouve suas últimas palavras e garante que a identidade do herói seja corretamente atribuída.

“Matraga” tem sido descrito como uma parábola de redenção, uma jornada de transcendência. Eu o vejo às vezes como uma briga de um indivíduo com a violência em si mesmo, uma briga simbolizada no filme de Roberto Santos pela cena (ampliada a partir de uma ceninha de nada no livro) em que Nhô Augusto domestica um cavalo, um “poldro bravo” e rebelde.

Em momento algum ele deixa de ser violento. Quando está em desespero, sai embaixo de chuva para o mato, de machado em punho, e tome a derrubar troncos. Ele é um homem feito para a violência, e só na violência encontra sua redenção final. Só que desta vez uma violência com propósito; e com sacrifício, porque é o confronto com um amigo a quem admira.