Sagarana foi escrito no Brasil, reescrito na
Alemanha, quando Guimarães Rosa era diplomata. Ele próprio relata, num texto
importantíssimo escrito para os arquivos do jornalista João Condé, e recolhido
por sua filha Vilma Guimarães Rosa em Relembramentos
(Nova Fronteira, 1983):
O livro foi escrito –
quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas – em sete meses; sete
meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e,
em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de
lucidez).
Como receita não pode
haver melhor. Basta apenas lembrar que a primeira versão é a que perdeu um
concurso literário em 1938, porque Graciliano Ramos votou contra. E Rosa,
depois, deu-lhe razão: o livro ainda estava “verde”.
Comentando o livro do
colega, Graciliano (num texto recolhido em Em
Memória de João Guimarães Rosa, José Olympio, 1968) dizia, da nova feição
do livro Sagarana em sua primeira
edição oficial:
Eliminaram-se três
histórias, capinaram-se diversas cousas nocivas. As partes boas se
aperfeiçoaram: “O Burrinho Pedrês”, “A Volta do Marido Pródigo”, “Duelo”, “Corpo
Fechado”, sobretudo “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, que me faz desejar ver
Rosa dedicar-se ao romance. (p. 44)
Guimarães Rosa afirmou
que todos os contos desse livro buscavam uma forma específica de expressão, que
ele foi descortinando aos poucos, conquistando por todos os flancos, e que
surgiu pronta na derradeira história. “Matraga”, o último texto do primeiro
livro, seria, por este julgamento, o primeiro texto a empregar todos os
recursos de que o escritor já se sentia capaz.
A história tem um
desenho simples. Nhô Augusto Esteves é um homem sem empatia, que pratica
maldades cercado de capangas. Trata com desdém a esposa e a filha, vive
raparigando, bebendo. Até que um dia se mete com um coronel poderoso, leva uma
surra homérica, é dado como morto.
Oficialmente
desaparecido, é recolhido por um casal pobre, tem uma sofrida convalescença
durante a qual torna-se religioso, rezador, trabalhador. O oposto completo do
que tinha sido antes. Com o casal de pretos velhos, emigra, vai morar num
povoado distante; e os anos se passam.
Na sequência final,
testemunhando uma injustiça de um chefe jagunço contra uma família de pobres,
volta a ser o valentão que fora e volta a pegar em armas, mas agora em defesa
de um ideal nobre.
Robert Heinlein
gostava de resumir numa frase os enredos básicos das narrativas de ficção (não
apenas da ficção científica). Um dos seus resumos favoritos era: “A man learns better”, um cara aprende
uma lição. Ou seja: um sujeito obstinado, cascudo, cheio de si, sofre uma
rebordosa. Essa crise de grandes proporções pulveriza suas certezas e o obriga
a se recompor – mas agora em outros termos. Obriga-o a se recriar.
Essa é a narrativa
básica de “A Hora e Vez de Augusto Matraga”.
Como bonecas russas
umas dentro das outras, vemos que o Augusto rezador, pequenininho, já estava
dentro do Augusto valentão. Vinha desde a infância, através da avó que o
encorajava a rezar. Quando o valentão entra em crise, vai sendo recoberto por
fora pela capa de um novo Augusto, que repete fanaticamente o mantra ensinado
por um padre: “Jesus, manso e humilde de
coração, fazei meu coração semelhante ao vosso!”
Quem assistiu a
magnífica adaptação de Roberto Santos para o cinema, de 1966, deve lembrar o
ator Leonardo Vilar (em sua hora e vez, e melhor momento da carreira) orando
essa pequena prece até gritá-la furioso.
E o que começa a
brotar ali é a síntese final entre o Augusto brabo e o Augusto manso e humilde
de coração. Nesse momento de conversão na marra, ele brada a frase que ficou
famosa: “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...”.
O primeiro encontro
com os jagunços comandados por Joãozinho Bem-Bem ajuda a ressurgir em sua alma
a força masculina, yang, que estava
adormecida. Ele recorda seus tempos de brigador, dos quais ao mesmo tempo se
envergonha e sente saudade, como quando se lamenta junto à preta velha que o
adotou:
E eu já fui zápede, já
pus fama em feira, mãe Quitéria! Na festa do Rosário, na Tapera... E um dia em
que enfrentei uns dez, fazendo todo-o-mundo correr... Desarmei e dei pancada,
no Sergipão Congo, mãe Quitéria, que era mão que desce, mesmo monstro
matador!... E a briga, com a família inteira, pai, irmão, tio, da moça que eu tirei
de casa, semana em antes de se casar?!...
Os jagunços vão embora
mas o olho clínico de Joãozinho Bem-Bem o faz convidar Nhô Augusto para
juntar-se ao bando, o que ele agradece mas recusa. Ainda não está pronto.
O tempo vai passando e
um dia ele acorda vendo as maitacas em migração, aves ruidosas nas quais ele vê
um sinal. Que está na hora de partir. Para onde? Ele não sabe.
Sagarana é um livro onde os personagens
estão o tempo todo em movimento, viajando, passeando, migrando, fazendo aquelas
intermináveis viagens a burro, a pé ou a cavalo, ao longo das quais acontecem
variadas coisas e se encontram personagens aleatórios. Nhô Augusto deixa-se
conduzir pelo jumentinho, deixando que ele decida:
E aí o jumento andou, e Nhô Augusto ainda deu um eco, para o cerrado
ouvir:
– “Qualquer paixão me adiverte...” Oh coisa boa a gente andar solto, sem
obrigação nenhuma e bem com Deus! (...)
E também, nas encruzilhadas, deixava que o bendito asno escolhesse o
caminho. (...) Mas, somadas as léguas e
deduzidos os desvios, vinham eles sempre para o sul, na direção das maitacas
voadoras. (...)
– Não me importo! Aonde o jegue quiser me levar, nós vamos, porque estamos
indo é com Deus!
E a esta altura um
Deus está conduzindo Matraga, por linhas tortas, para sua hora e vez, para o
encontro com seu destino. Esse Deus o leva de volta aos arredores do arraial do
Murici, onde a história começou. E é um Deus diferente do Deus de todo mundo. Matraga
transformou-se num ronin, um samurai
errante, sem tropa e sem patrão. E o seu deus é um Deus guerreiro:
...num sonho bonito,
no qual havia um Deus valentão, o mais solerte de todos os valentões, assim
parecido com seu Joãozinho Bem-Bem, e que o mandava ir brigar, só para lhe
experimentar a força, pois que ficava lá em-cima, sem descuido, garantindo
tudo.
Reencontrando os
jagunços, Nhô Augusto reata por minutos a amizade mas logo se pôe em confronto,
para impedir que Joãozinho Bem-Bem, que quer vingar um capanga morto à traição,
cometa uma crueldade contra uma família indefesa. Trava-se o combate, e o
narrador onisciente já começa a transferir a história para o plano da lenda
futura, ao usar o ponto de vista do povo que assiste tudo:
E aí o povo encheu a
rua à distância, para ver. Porque não havia mais balas, e seu Joãozinho Bem-Bem
mais o Homem do Jumento tinham rodado cá para fora da casa, só em sangue e em
molambos de roupas pendentes.
E ele garante que a
história seja bem contada, trazendo um figurante crucial, “o João Lomba, conhecido velho e meio parente”, que reconhece Nhô
Augusto, ouve suas últimas palavras e garante que a identidade do herói seja
corretamente atribuída.
“Matraga” tem sido
descrito como uma parábola de redenção, uma jornada de transcendência. Eu o
vejo às vezes como uma briga de um indivíduo com a violência em si mesmo, uma
briga simbolizada no filme de Roberto Santos pela cena (ampliada a partir de
uma ceninha de nada no livro) em que Nhô Augusto domestica um cavalo, um
“poldro bravo” e rebelde.
Em momento algum ele
deixa de ser violento. Quando está em desespero, sai embaixo de chuva para o
mato, de machado em punho, e tome a derrubar troncos. Ele é um homem feito para
a violência, e só na violência encontra sua redenção final. Só que desta vez
uma violência com propósito; e com sacrifício, porque é o confronto com um
amigo a quem admira.