Nem tudo que diz respeito aos anos 1960 pode ser carimbado com a fórmula “sexo, drogas e rock-and-roll”.
O livro de memórias de Anne Wiazemsky, Um Ano Depois (Ed. Todavia, 2018, trad. Julia de Rosa Simões)
poderia se chamar O amor, o cinema e a
revolução, porque era mais ou menos este o lema em vigor na época que ela
viveu tão de perto e descreve tão bem.
Anne foi casada com Jean-Luc Godard e aparece nos seus
filmes A Chinesa, Week End, One Plus One, além do Teorema
(1968) de Pier Paolo Pasolini e A Grande
Testemunha (1966) de Robert Bresson. Era uma atriz discreta, mas muito
fotogênica, e correspondia (tal como Anna Karina, a esposa-musa anterior de
Godard) ao tipo mediano das garotas daquele tempo.
Alguém dirá que nem todas as garotas daquele tempo eram
tão bonitas; mas atrizes como estas duas reproduzem modos de andar, de vestir,
de sentar, de discutir, de dançar, de cantar, nos quais rapazes e moças se
reconheciam sem esforço. Essas atrizes de cinema que a gente chama de “musas de
uma geração” nem sempre são bonitas. Elas são
um conjunto de atitudes, inflexões de voz, movimentos, olhares, que dão
a sensação imediata de uma verdade de dentro para fora.
Anna Wiazemsky relata as agitações de 1968 com o olho de
quem, quando deu fé, estava no centro do furacão, coitada. E ao lado de Godard,
no ano crucial da vida do diretor – quando este parou de fazer filmes sobre
garotas como ela e começou a fazer filmes de esquerdismo militante e radical. Com
quase 40 anos, Godard estava se fascinando cada vez mais com o ardor combativo
dos jovens radicais do movimento estudantil.
Era principalmente Jean-Jock quem falava, os silêncios de Jean-Luc me
surpreendiam: ficar calado na presença de outra pessoa não era um dos seus
hábitos, ele sempre precisava ter a última palavra. (p. 21)
Há um episódio pitoresco logo no início, quando Godard é
convidado para dirigir o filme O
Assassinato de Trotsky tendo John Lennon no papel-título. Ele e Anne viajam
a Londres, se reúnem com os Beatles na Apple, mas os “santos” de Godard e
Lennon não se harmonizam em momento algum (o que não é de admirar), e a reunião
termina com Paul McCartney convidando Anne para tomar chá embaixo da mesa.
O projeto não foi à frente; mas como Godard já estava em
Londres, com um pré-contrato assinado, acabou aceitando dirigir os Rolling
Stones em One Plus One, que não passa
de uma longa maratona de ensaios da canção “Sympathy for the Devil”,
intercalado com discursos marxistas-leninistas.
No pinga-fogo das passeatas estudantis, com as ruas de
Paris sendo desparalelepipedadas pelos estudantes para combater a polícia, a
cidade parou. Diz Anne: “em pouco tempo
os estoques de rádios de pilha pela primeira vez se esgotaram no país”.
Godard vai para as passeatas cheio de perplexidade e entusiasmo, tropeça,
quebra os óculos...
O bom de livros assim é trazer esses olimpianos (como os
chamava Edgar Morin) ao plano banal e nada heróico de nós mesmos. É romântico,
mas também dá um certo consolo financeiro, saber que de manhã Godard levava para
Anne uma bandeja com “uma xícara de
Nescafé e um pão com manteiga”. E lendo relatos do dia a dia de pessoas tão
famosas (aparecem Bernardo Bertolucci, Gilles Deleuze, Pier Paolo Pasolini,
etc.) a gente vê como o pessoal daquele tempo vivia modestamente. Comparados a
eles, nós brasileiros de hoje somos uns xeiques sauditas.
Maio 1968 ficou de certa forma como um modelo de estudo para
manifestações de rua por muito tempo. Não há como não reconhecer Junho 2013 em
trechos como:
Às vezes, exaustos, parávamos num café para descansar ou beber alguma
coisa. Todos os cafés estavam abertos, nenhuma porta fechada. Os comerciantes e
moradores do bairro se diziam indignados com a violência policial e não
deixavam de ajudar os jovens que buscavam abrigo. (p. 35)
Os confrontos tinham começado sem que ninguém soubesse por quem. Os
estudantes acusavam as forças de segurança, que por sua vez acusavam os
estudantes. Pela primeira vez, ouvimos falar em “elementos incontroláveis” que
teriam se infiltrado na passeata para semear a discórdia. Estudantes
entrevistados falavam em “provocadores manipulados pela polícia”. (p. 44)
Somente alguns estudantes, que ele julgava pertenceram à UNEF e que
portavam megafones, pediam sem cessar: “Voltem para casa, não se deixem
manipular... A manifestação de luto terminou há muito tempo... Voltem para suas
casas.” (...) Um grupo de uma centena de
jovens, rostos cobertos por lenços, muitas vezes com capacetes e armados de
coquetéis Molotov, lhe parecia particularmente perigoso porque estava
visivelmente determinado a lutar. (p. 116)
Não é um livro de análises, é um livro de lembranças e
comentários. Engana-se quem pensa que Jean-Luc Godard era diferente de qualquer
um de nós no que diz respeito à comédia conjugal. Anne Wiazemsky tinha 21 anos
então, Jean-Luc tinha 37 e além do mais era o que o pessoal chama “uma lenda
viva”, “uma pessoa pública, um oráculo,
uma estrela, uma espécie de deus” (p. 114)
O que não o impedia de, no dia seguinte a um bate-boca
feroz com Anne, pedir desculpas nestes termos: “Lamento o que disse antes, falei sem pensar, e, se você acreditou, é
uma imbecil.”
Um livro de memórias é sempre um livro onde o autor
demonstra que quem tinha razão era ele. O livro de Anne Wiazemsky é uma série
de flashes breves na vida de uma garota que, por caminhos de família e de
profissão, estava no epicentro da crise ideológica de sua época. Muita tinta
filosófica e política já correu sobre Maio 1968, mas a tinta de Anne, se não
traz nenhum “raio ordenador” sobre aquela balbúrdia, relata com clareza o que
era estar no meio dela.
(A Grande Testemunha)