Vou logo avisando que no presente artigo as expressões
“pornografia” e “perversão sexual” estarão sendo empregadas sem a menor intenção
pejorativa. Considero a literatura
pornográfica um gênero literário tão válido quanto qualquer outro, e as
perversões fazem parte, em graus variados, da vida sexual tanto da maioria
quanto da maioria das minorias.
O que é pornografia?
Os críticos tentam distinguir entre uma pornografia “propriamente dita”
e a pornografia com ambições literárias, como certas obras de Georges Bataille,
Pierre Louys, Henry Miller, etc. A única
distinção que acho é que na pornografia-propriamente-dita o único
objetivo é excitar. Na pornografia
literária, as cenas de excitação são entremeadas com narrativas, dramatizações,
enredo, desenvolvimento de personagens, discussão de idéias, etc., por mais
“gráficas”, “explícitas” que sejam as cenas de sexo.
Ou seja, a pornografia literária é um romance como
qualquer outro onde acontecem cenas de sexo “tórridas”, descritas graficamente.
Como as coisas são na vida real. Na maior parte dos outros livros, usam-se
subterfúgios: “Foram para a alcova e apagaram as luzes. Na manhã seguinte...”.
O critério para distinguir os dois é o fato de que as obras
ditas “literárias” contêm algo que os aficionados da pornografia propriamente
dita consideravam encheção de lingüiça. Contém
literatura. Em salas de exibição de filme pornô, já vi a reação das platéias diante
de filmes pornô-chique tipo Emmanuelle,
impacientes diante das longas cenas de conversa, de viagens, de jantares
elegantes: “Vamo lá, porra! Vim aqui pra
ver foda!”
A pornografia é uma literatura pervertida, não porque
mostre cenas explícitas de sexo, mas porque é uma literatura obcecada, com
idéia fixa, uma literatura que mostra
somente isso. O leitor quer ver
somente isso, e recusa com veemência qualquer outra coisa, não importa o
quê.
Ele veio ao filme (ou comprou o livro, a revista) apenas
para ver isso, para ver cenas que o excitem, e qualquer cena realizada com
outro objetivo lhe parece uma enganação, uma venda de gato por lebre, uma perda
de tempo e de dinheiro.
Curiosamente, não é apenas a literatura pornográfica que
cultiva esta atitude. A maioria das
literaturas de gênero também o faz. A
literatura de gênero se caracteriza por um conjunto de convenções onde
determinados elementos são obrigatórios. No caso do western, aventuras
numa ambientação histórico-geográfica. No romance policial clássico, um crime
que precisa ser resolvido (e o autor não deve perder tempo com “historinha de
amor”, discussão de problemas sociais, etc). E assim por diante.
Podemos também ver nos gêneros as convenções de origem,
que deram origem à criação do gênero, e as convenções secundárias, que
resultaram da evolução histórica do próprio gênero.
No caso do western, a convenção de origem é a
ambientação histórico-geográfica numa época e numa região específicas dos
EUA. As convenções secundárias são os
temas, situações e personagens que foram se cristalizando ao longo de décadas:
o xerife que enfrenta bandidos mais numerosos; o pistoleiro solitário; o cerco
dos índios aos carroções; o duelo frente a frente para ver quem é mais rápido
no gatilho... São uma espécie de figuras de linguagem que crescem no interior
do gênero, e que começam a ser aceitas tacitamente pelo público, e mesmo
aguardadas com expectativa.
Existem leitores inveterados de westerns que
querem apenas acompanhar a trama, e se aborrecem se as digressões históricas e
o aprofundamento de personagens se tornar muito forte dentro do livro.
O mesmo ocorre com leitores de romances detetivescos:
muitos autores da Era Clássica do Romance Policial desaconselhavam o
aprofundamento psicológico dos personagens ou as preocupações estilísticas,
porque afastam o autor da função principal, que é o puzzle
criminoso.
O mesmo se dá com a ficção científica, onde muitos
autores e críticos também desaconselham as extrapolações “literárias”, devendo
a narrativa se concentrar nos aspectos ciencificcionais da história.
Sempre que se publicam “decálogo das regras do gênero X”,
esse aspecto infalivelmente aparece. As famosas “guidelines” das revistas
profissionais norte-americanas e inglesas sempre voltam a esse ponto,
aconselhando o escritor novato: não perca seu tempo contando coisas que não
sejam caracteristicamente do gênero. Vá direto ao ponto. O leitor não quer
perder tempo, quer ver o que já espera que vai ver.
Estas atitudes reproduzem de modo muito semelhante a
atitude do leitor de pornografia, que quer ver apenas a descrição gráfica de
atos sexuais e se impacienta com qualquer coisa que se afaste disso.
É uma concentração obsessiva num único aspecto da
história, e isso tem a ver com as perversões sexuais, que são (de modo
genérico) uma concentração obsessiva num único aspecto do sexo. O fetichismo dos pés, o BDSM
(bondage-domination-sado-masoquista), o voyeurismo, tudo isto são facetas da
sexualidade que a maioria das pessoas ditas normais cultiva em certa medida. Em
alguns casos, no entanto, se tornam perversões exclusivas. A única maneira de conseguir excitação e
prazer.
Quando o voyeur só consegue sentir prazer através do
voyeurismo, ele nega toda a variedade possível do ato erótico para se
concentrar num único aspecto. Qualquer
outra coisa é insuficiente para dar-lhe prazer, para despertar seu interesse. Tem-se a impressão de que diante de tudo o
mais ele dirá: “Chega, não me interessa, nada disso me interessa – vamos à única coisa que realmente importa.”
É uma atitude muito parecida com a do aficionado pela
literatura de gênero, ou mesmo pela literatura mainstream, que recusa-se a absorver qualquer mistura de
experiências, e exige que a literatura se concentre numa área muito limitada de
convenções específicas. As que ele
aprendeu como sendo “a maneira certa de fazer literatura”. Ou a maneira certa
de fazer “a literatura que eu gosto”.
Assim como o consumidor de pornografia, ele é um leitor
pervertido. Quer ver apenas uma coisa, e recusa com veemência o que considera “conversa
jogada fora”.