quarta-feira, 2 de maio de 2018

4343) A arte do símile (2.5.2018)



(na foto: Jessier Quirino)

O símile, ou comparação, é um recurso literário que fez a fama de muitos autores. 

É diferente da metáfora. Se digo que “o céu nublado parecia o teto de uma caverna” estou fazendo uma comparação ou símile; se digo “o céu nublado era o teto de uma caverna” isto é uma metáfora. 

Um autor célebre pela sutileza e precisão dos seus símiles é Raymond Chandler, em seus romances policiais sobre a Califórnia dos anos 1940. Os símiles de Chandler (sempre através dos olhos de seu personagem-narrador, o detetive Philip Marlowe) são pequenos “flashes” que definem um personagem. 

Quando ele nos fala (em A Dama do Lago) de “um garçom enrugado, com olhos maldosos e um rosto como um osso com marcas de dentes”, não é apenas a imagem visual do rosto que ele nos transmite, mas a impressão da presença de uma voracidade cega, como a de um cão mordendo um osso. 

Em O Sono Eterno, numa cena de tensão e perigo durante um confronto a tiros em volta de uma casa, ele diz: “Lá fora a chuva ainda caía, com um som distante, como se fosse a chuva de outra pessoa”.  Essa comparação inesperada mostra a dissociação emocional do narrador: no interior daquele aposento há indivíduos a ponto de matar e de morrer, mas a chuva cai num mundo onde nada daquilo existe, um mundo onde o destino deles não tem a menor importância.

Toda a cultura oral e a literatura popular estão fervilhantes de símiles, registros da observação minuciosa das pessoas, das coisas e dos ambientes.

O poeta Jessier Quirino, em seus numerosos livros de poemas em linguagem “nordestinense”, utiliza o poder de observação dos poetas matutos para registrar símiles pitorescos como: “ligeiro que só coceira de cachorro” (note-se que para o nordestino “ligeiro” significa “rápido”), “cabelos pedindo afago feito um cachorrinho novo”, “tranquilo que só jumento em sombra de igreja”. Cada comparação destas nos dá não somente a idéia abstrata que o autor quer transmitir, mas também uma pequena polaróide de um ambiente humano e social. 

Guimarães Rosa é outro autor que explora essa tendência regionalista para o símile, produzindo frases que têm origem nessa capacidade comparativa do homem rural. Nos contos de Tutaméia encontramos “sutil como uma colher de chá”, “custoso que nem guardar chuva em cabaça”, “feia feito fritura queimada”, “inquieta como um nariz de coelhinho”. 

Em geral o símile pode ser reconhecido pela presença de um adjetivo, ou de uma locução descritiva qualquer, seguido de termos comparativos que variam de região para região: “como”, “feito”, “que nem”, “que só”, “tal qual”, “talqualmente”, “direitinho”, etc. 

Com ressalvas, claro.  Quando Jessier Quirino, num dos poemas do livro Berro Novo, diz que Fulano “saiu que nem uma vaca acuada de cachorro”, a comparação prescinde de um adjetivo. Ele não qualifica a saída do Fulano (“saiu desajeitado que nem...”, etc.), mas a comparação já basta para evocar a imagem de uma criatura pesadona perseguida por uma mais leve, e que sai bamboleando, meio aos tropeções, sabendo que não vai poder fugir mas fugindo assim mesmo.

O autor que se inspira nos modos populares de dizer não se limita a reproduzir, mas vai além e inventa imagens que dizem mais respeito a sua própria sensibilidade e sua memória afetiva do que à cultura oral. 

É assim que Guimarães Rosa diz de uma mulher pequenina que ela “semelhava a boneca de brincar de um menino enorme”, e Jessier diz de outra que “tinha o cabelo comprido como o vestido de Eva”.

Alguns símiles de Chandler se exprimem através de frases mais longas, que exigem mais da imaginação do leitor, como quando ele diz (em O Sono Eterno): “Os lábios dela moveram-se lentamente, com cuidado, como se fossem lábios artificiais e tivessem que ser manipulados através de molas”. 

É uma comparação complexa e levemente fantástica, mas exprime uma realidade psicológica que o leitor percebe sem dificuldade (a personagem é uma mulher calculista, pouco confiável) no contexto da história e do estilo do autor.

Chandler é capaz de trazer do nada esses elementos comparativos, de um modo que, em vez de desconcertar o leitor, trazem-lhe uma visão mais rica do ambiente descrito.  Ele diz (em A Dama do Lago): “O elevador automático era acarpetado de pelúcia vermelha, e tinha um perfume como o de três viúvas tomando chá”.  As viúvas parecem surgir do nada, mas na verdade surgem do mesmo ambiente californiano (de riqueza, ostentação e de um certo declínio) a que pertence o elevador. 

Quando Jessier Quirino diz de um acontecimento qualquer que era “devagar que só enterro de viúva rica”, ele usa o mesmo mecanismo de sugestão que Chandler. Não importa que sejam duas sociedades e culturas muito diferentes entre si.

O livro The Notebooks of Raymond Chandler mostra que ele anotava esses similes em longas enumerações, para não esquecer, e depois os inseria nas narrativas.

Ray Bradbury, outro mestre do símile, assim descreve um homem chegando em casa numa fase de problemas conjugais com a esposa: “Ele abriu a porta do quarto de dormir. Era como entrar na sala de mármore de um mausoléu depois que a lua se pôs.” (Fahrenheit 451).

Don DeLillo, em The Names, põe na boca de um personagem uma comparação coloquial, cotidiana: “Estou começando a encarar a Europa como um livro de capa dura, enquanto os Estados Unidos são a edição de bolso.”

Imitadores de Chandler costumam exagerar no uso de símiles, assim como imitadores de Michael Jackson fazem passos de moonwalk três vezes por minuto. Isso nem é bom para os imitadores, que nos cansam bem depressa, nem para o original, que acaba nos cansando também, devido ao excesso de uso alheio.

O maior perigo do símile é que ele se transforme, como tantos outros efeitos de estilo, numa simples prestidigitação de palavras destinada a fazer o leitor pensar: “Puxa vida, que escritor hábil, que cara inteligente”. O bom símile é aquele que produz no leitor um pequeno choque de surpresa e de reconhecimento, fazendo-o ver melhor aquele personagem, aquela cena, aquela situação, sem lembrar que está lendo um livro e que aquele livro foi escrito por alguém.




Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento (São Paulo), # 51, janeiro de 2010.