Em 28 de janeiro passado publiquei neste blog o artigo “Um teste com o tradutor automático”, em que examinei e comparei alguns textos curtos que fiz passar no tradutor automático do Google, às vezes com resultados medianos, outras com resultados grotescos.
Agora
me deparei com um artigo de 30 de janeiro em que uma experiência semelhante é
relatada por Douglas Hofstadter, autor do clássico Godel, Escher, Bach: an Eternal Golden Braid (1979) e também de Le Ton Beau de Marot (1997), um dos
melhores e mais extensos ensaios que já vi sobre a arte da tradução.
O artigo de Hofstadter, “The Shallowness of Google
Translate” está aqui:
https://www.theatlantic.com/technology/archive/2018/01/the-shallowness-of-google-translate/551570/
Ele faz
experiências de ida e volta de alguns parágrafos do inglês para o francês, o alemão
e o chinês. O artigo é longo, com exemplos minuciosamente dissecados, e não vou
traduzi-lo aqui. Vou somente comentar algumas das idéias de Hofstadter, com as
quais concordo.
Ele diz
que o Google Translate na verdade não traduz, ele apenas substitui séries de
palavras. Traduzir, para DH, é entender, e uma máquina como as do Google não
“entende” um texto da mesma maneira que um tradutor humano entende. O Google
apenas substitui cegamente algumas frases por outras. Quando é necessária uma
compreensão profunda, por todos os ângulos, daquilo que o texto está dizendo, o
tradutor mecânico falha miseravelmente.
Ele é
incapaz (para citar apenas o primeiro exemplo dado no artigo) de identificar
corretamente o gênero das pessoas mencionadas num texto, a partir dos pronomes
possessivos. O primeiro teste feito por Hostadter foi com este trecho, vertido
do inglês para o francês:
Na casa deles, todas
as coisas eram aos pares. Havia o carro dele e o carro dela, as toalhas dele e
as toalhas dela, a biblioteca dele e a dela.
Como em
francês o gênero dos pronomes possessivos se refere à coisa possuída, e não ao
possuidor, o texto francês ficava sem sentido:
Dans leur maison, tout vient en paires. Il y a sa voiture et sa voiture,
ses serviettes e ses serviettes, sa bibliothèque et les siennes.
Por
que? DH explica que um tradutor humano percebe imediatamente todo o contexto
pessoal e social que está sendo descrito, e traduz de acordo. Um tradutor
automático não percebe nada. Ele apenas substitui palavras na língua A pela
palavra estatisticamente mais próxima na língua B.
E por
aí vai. Diz o autor:
Nós, humanos, sabemos
todo tipo de coisas a respeito de casais, residências, objetos pessoais,
orgulho, rivalidade, ciúme, privacidade e muitos outros fatores intangíveis que
desembocam numa tal situação: um casal que possui toalhas onde está bordado
“Dele” e “Dela”. O Google Translate não tem a menor familiaridade com tais
situações. O Google Translate não tem familiaridade com situação nenhuma, e
ponto final. A única familiaridade que ele tem é com cadeias de palavras
compostas por cadeias de letras.
Falta
ao tradutor do Google aquilo que a jornalista Maria do Rosário Caetano chama de
“Nossa Senhora do Contexto”. O computador (por enquanto, 2018) não enxerga o
contexto de nada do que está traduzindo. Não compõe uma imagem mental da
situação descrita; não tem uma memória pessoal de situações análogas, com a
qual possa compará-la, e que possa tomar como base para uma interpretação.
Diz
Hofstadter:
É quase irresistível
para as pessoas presumir que um software que usa as palavras com tanta fluência
deve saber, certamente, o que elas significam. (...) [Mas] o uso do Google
Translate é na verdade um processo de passar ao largo ou de rodear
o ato de compreender a linguagem.
E ele
descreve, de uma maneira que me parece adequada (pelo menos é o que corresponde
à minha experiência pessoal), o que acontece no momento da tradução humana:
Quando eu traduzo,
primeiro leio o texto original cuidadosamente, e internalizo as idéias tão
claramente quanto possível, deixando que elas fiquem se agitando de um lado
para outro na minha mente. Não são as palavras do original que se agitam, mas
as idéias, que despertam os mais variados tipos de associações, criando um halo
muito rico de cenários na minha mente. Nem preciso dizer que a maior parte
deste halo é inconsciente. Somente quando este halo foi evocado o bastante na
mente eu começo a tentar expressá-lo – a “pressioná-lo para fora” – na segunda
língua.
É
justamente essa fase que os tradutores automáticos são (por enquanto) incapazes
de realizar, embora nada indique que essa incapacidade seja permanente. Um
conjunto de computadores como os nossos não tem memória afetiva, não tem
percepção de fatores como ironia ou sarcasmo, não avalia (ou o faz apenas
mecanicamente) a implicação social contida em palavras de gíria, arcaísmos,
neologismos, nonsense, etc.
Douglas
Hofstadter está longe de ser um ludita ou um inimigo das máquinas: Godel, Escher e Bach (ganhador do Prêmio
Pulitzer) tem 700 páginas de maciça fascinação pelas possibilidades da Inteligência
Artificial. Mas enquanto grande parte dos entusiastas da A. I. concentram sua
atenção no lado “artificial” (como produzir esses processos?), ele investiga o
lado “inteligência” (em que consistem os processos?).
Diz ele
no artigo:
Não quero deixar nos
leitores a impressão de que acredito que inteligência e compreensão serão para
sempre inacessíveis aos computadores. Se neste artigo pareço afirmar isto, é
porque a tecnologia aqui discutida não faz nenhuma tentativa de reproduzir a inteligência
humana. Muito pelo contrário: ela tenta apenas dar a volta ao problema, e os
trechos aqui exibidos mostram claramente suas lacunas gigantescas. (...) Do meu
ponto de vista, não há nenhuma razão fundamental para que uma máquina não possa
um dia, em princípio, pensar, ser criativa, engraçada, nostálgica, excitada,
amedrontada, extasiada, resignada, esperançosa, e, como corolário disto, capaz
de traduzir admiravelmente de uma língua para outra. (...) [Mas] eu acredito
que isso ainda está extremamente longe de acontecer.
A
verdade é que não traduzimos apenas com os centros linguísticos do cérebro. Se
o que estamos traduzindo é um texto puramente abstrato, impessoal, meramente
enunciativo, até que vai. Mas na literatura, principalmente, há fatores animais
e sociais envolvidos, e digo animais da maneira mais respeitosa possível, para
lembrar que o fato de termos um corpo condiciona nosso medo, nossa raiva, nossa
afetividade, nossos (des)confortos, nossa relação com o ambiente e com outras
pessoas.
Grande
parte da literatura e da poesia se refere a contextos físicos, corporais,
psicológicos, emotivos, sociais etc. que nem sempre vêm claramente expostos, mas
constituem uma camada “subterrânea” do texto, algo que mesmo um leitor jovem,
um leitor recente, é capaz de entender, porque tem em si um contexto de
comparação.
É esse
contexto humano que evocamos ao traduzir. E a máquina não tem (por enquanto) o
que evocar, nem como.