Em seu prefácio ao Macunaíma
(1928), e depois nos manuscritos do relato de viagem O Turista Aprendiz (concluído em 1943, publicado em 1976), Mário de
Andrade usou algumas vezes o termo “desgeograficar” para descrever o seu método criativo pouco ortodoxo.
Inspirando-se nas pesquisas de Koch-Grunberg e outros,
ele se muniu de uma extensa documentação sobre mitos amazônicos (bem como de
outras regiões), e passou tudo no liquidificador.
No chamado “2º. Prefácio” de Macunaíma, ele diz:
“[O livro] Possui aceitação sem timidez nem vanglória da entidade
nacional e a concebe tão permanente e unida que o país aparece desgeograficado
no clima na flora na fauna no homem na lenda na tradição histórica até quanto
isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo. Falar em
‘pagos’ e ‘querências’ em relação às terras do Uraricoera é bom”
Como se vê, Mário queria pegar esse material etnográfico
bruto e puxá-lo todo de uma vez para um nível mais alto, mais abstrato, mais apenas-literário.
“Abstrato” no sentido de não estar mais com raízes fincadas numa realidade
regional obrigatória – daí sua sugestão se usar o vocabulário gaúcho (“pagos”,
“querências”) para falar do mundo amazônico.
Por um lado, ele queria (imagino) se permitir uma certa
liberdade criativa no aspecto literário, sem que lhe aparecesse à porta um
antropólogo de plantão, de caderneta em punho, tocando na campainha e avisando
que a palavra tal era desconhecida dos tupiniquins e usada apenas pelos
tupinambás.
Mário tinha espírito científico suficiente para saber com
clareza em que instâncias este espírito deve se impor, e em que instâncias ele
é um desnecessário freio-de-mão-puxado, travando a imaginação narrativa,
fabulatória. Deixar de contar uma história boa porque algum ponto necessário a ela
contradiz um dado da ciência é um erro gratuito. Se tem alguma Musa ou Deusa
que conhece o seu lugar, é a Ciência. Ela sobrevive. (Isto vale para a ficção
científica também. É a ficção que dá a última palavra.)
Mário deixa isso bem claro numa nota de 1926 ao primeiro
prefácio (estou citando a reedição anotada e comentada de O Turista Aprendiz, Brasília, Iphan, 2015):
“(Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a
fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao
mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como
entidade homogênea – um conceito étnico nacional e geográfico.)”
Desgeograficar na prática corresponde a uma tentativa
(acho eu) de desregionalizar na literatura, porque já naquela época era forte o
viés “regionalista” em nossa ficção, preparando a explosão dos grandes romances
da década seguinte: Rachel de Queiroz, Graciliano, José Lins, etc.
Era muito enxerimento de Mário querer “conceber
literariamente o Brasil como entidade homogênea”, mas era exatamente isso que
se fazia necessário, por equilíbrio – em paralelo ao trabalho dos escritores da
outra tendência, os regionalistas de precisão etnográfica, precisos no uso de
cada termo ou na descrição de cada plantinha, peça de roupa, geringonça de
trabalho.
O “homogeneizar” de Mário não era transformar tudo em
cópia idêntica disso ou daquilo, mas remover as barreiras da alfândega cultural
segundo a qual só os nordestinos deviam falar do Nordeste, só os mineiros de
Minas, os baianos da Bahia. Tornar toda a cultura brasileira um banco-de-dados
com livre acesso aos brasileiros.
Por isso mesmo que um dos maiores poemas amazônicos, Cobra Norato (1931), foi escrito pelo
gaúcho Raul Bopp.
É curioso comparar essa idéia-projeto de Mário com a
expressão do cyberpunk William Gibson
ao dizer que certas corporações de hoje não são mais propriamente “multinacionais”
e sim “pós-geográficas”. É um movimento parecido de anular a geografia, mas no
sentido inverso, de cima para baixo, do macro para o micro, do universo das
grandes invasões uniformizadoras, para quem as fronteiras nacionais, os
idiomas, as culturas, são problemas de discrepância que precisam ser resolvidos
como alguma espécie de Raio Homogeneizador.
Mário queria o contrário disso. Queria exaltar o único, o
diferente, o individual, todas as faunas e floras, todas as lendas e parlendas,
para que se tornassem moedas com valor de troca para além da sua tribo de
origem.
Pensava ele (penso eu) na necessidade de despregar essas
obras tipo Macunaíma da obrigação
servil de funcionar como mera ilustração da realidade e ganhar autonomia
literária. Pode parecer que não, mas sempre foi e ainda é grande a vigilância
etnográfica em nossa literatura, uma ansiedade ou angústia que é uma doença
infantil do Realismo literário.
Realismo é a ilusão de que a literatura é capaz de
reproduzir a Realidade, e é consequência da ilusão renascentista-vitoriana de
que podemos um dia saber o que é a Realidade.
Por outro lado, Mário não estava querendo, a julgar por
suas explicações, que a literatura virasse um samba do crioulo doido, virasse
uma cantoria de Zé Limeira. Ele ressalva: “até
quanto isso possa divertir ou concluir um dado sem repugnar pelo absurdo”.
Isso sem dúvida é uma opção estética das mais
problemáticas, porque não serão poucos os casos em que um leitor desavisado
como eu irá basear uma argumentação em algo que leu num romance e supôs com
ingenuidade que era um dado factual indiscutível. “—Mas é claro que os
amazonenses chamam seus territórios afetivos de querências!... Está lá no livro
de Mário!...”
Paciência. Essa atitude dele me parece aquele impulso
eterno da literatura para se despregar do meramente factual e ir ao cerne
fabulatório das histórias a serem contadas, contadas à revelia dos fatos e
lugares onde tiveram origem.
Num poema de A
Volta ao Dia em 80 Mundos, Cortázar diz num poema dedicado a Borges que ele
falava em Babilônia e pouca gente entendeu que ele se referia ao Rio da Prata.
Bertolt Brecht desgeograficava a Alemanha que queria
criticar, transformando-a em Manhattan, China, Londres, Cáucaso. Era uma
maneira de dizer: “Esqueçam a geografia. Esta estória é sobre a História”.