quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

4312) O Feiticeiro de Terramar (7.2.2018)



Ursula Le Guin faleceu alguns dias atrás, aos 88 anos. Por sincronicidade, eu estava em plena leitura da trilogia inicial do seu ciclo sobre o Arquipélago de Terramar (“Earthsea”), ciclo do qual eu só conhecia algumas histórias mais recentes.

Le Guin era uma dama de calma sabedoria e inexcedível elegância, mas ela própria não estava (nem precisava estar) acima de certos ciúmes e certas rivalidades literárias. Quando alguém se referia ao ciclo de Harry Potter e Hogwarts, ela dava um muxoxo e dizia: “Bem que aquela moça poderia ter dito de quem pegou a idéia de uma Escola para Magos”.

A idéia, claro, é a que ela criou (com grande impacto junto à crítica e aos leitores) nos três primeiros volumes de sua série: A Wizard of Earthsea (1968), The Tombs of Atuan (1971) e The Farthest Shore (1972). A Ilha de Roke, governada pelos Nove Mestres da magia.

Os três romances foram escritos para o público juvenil, mas pertencem àquela faixa que qualquer leitor adulto pode ler com prazer e proveito. Uma prosa límpida, rica, encantatória. São três histórias com protagonistas adolescentes.

No primeiro livro, o garoto Ged, ou “Sparrowhawk” demonstra talento para a magia e é encaminhado para a Escola dos Magos, na ilha de Roke. Ali ele acaba liberando, por imprudência e hubris, uma força sobrenatural que lhe caberá enfrentar e dominar no desfecho.

No segundo, Arha é uma menina sacerdotisa de um culto antiquíssimo na ilha de Atuan, numa ordem composta apenas por mulheres e eunucos. Uma de suas atribuições é ser capaz de se orientar, na treva total, no interior do enorme labirinto subterrâneo que existe por baixo do templo – e onde um dia, inesperadamente, ela descobre a presença de um ladrão que desperta sua ira e depois sua curiosidade.

No terceiro livro, um jovem príncipe é enviado para a ilha de Roke para se queixar aos Nove Mestres de que a magia, a cultura e a memória estão desaparecendo em muitas ilhas do Arquipélago. E cabe-lhe acompanhar o Arqui-Mago na caçada ao inimigo invisível que está apagando a memória cultural de Terramar.

A série está sendo publicada no Brasil pela Editora Arqueiro (SP), que já lançou os dois primeiros volumes, com tradução de Ana Resende.

Ursula Le Guin pertence à escola dos autores de Fantasia para quem a magia não é um simples “abracadabra” capaz de produzir qualquer resultado. Ela trabalha na linha da hard fantasy: a magia precisa ter regras, ter limitações, ter uma economia interna tal como tem a Ciência, onde nada pode ser feito “de graça”.

Criar um efeito mágico produz um desgaste na energia do mago. Ele pode criar um vento artificial para soprar a vela do seu barco e navegar com mais rapidez, ou pode evitar que um prédio desmorone sobre sua cabeça durante um terremoto; mas com isso gasta uma espécie de combustível, não pode manter esse esforço indefinidamente. Não existe almoço grátis no mundo da magia.

A magia no Arquipélago de Terramar (tal como o futuro no mundo cyberpunk!) também não está distribuída por igual.

Os Poderes Antigos não conseguem cruzar o mar, e cada um deles está preso a uma ilha, a um certo local, a uma caverna ou a uma nascente de água. (Wizard, cap. 7; estas traduções são minhas)

“Há encantamentos eficazes que eu aprendi em Roke mas que não funcionam aqui, ou funcionam desordenadamente. E também há encantamentos daqui que nunca estudei em Roke. Cada terra tem seus próprios poderes, e quanto mais a gente se afasta do centro do arquipélago menos é capaz de prever essas forças e o modo de controlá-las.” (Wizard, cap. 9)

É uma magia que extrai seu poder do verdadeiro nome de todas as coisas e todos os seres, nome que só os magos são capazes de descobrir e controlar. Controlar o nome das coisas é controlar as coisas do mundo.

Saber os nomes é o meu trabalho. A minha arte. Para produzir a mágica de alguma coisa, é preciso descobrir seu verdadeiro nome. Na terra onde eu vivo, mantemos nossos verdadeiros nomes escondidos durante a vida inteira, diante de todos a não ser aqueles em quem temos total confiança. Porque num nome existe grande poder, e grande perigo. Huve uma época, no princípio dos tempos, quando Segoy fez as ilhas de Terramar se erguerem das profundezas do oceano, em que todas as coisas portavam seus verdadeiros nomes. E todo o ofício da magia, da feitiçaria, se baseia em reaprender, em lembrar, essa antiga e verdadeira linguagem do Fazer. Há encantamentos a serem aprendidos, claro, modo de usar as palavras; e o mago deve saber também quais são as consequências. Mas o que um mago leva a vida inteira fazendo é descobrir quais os nomes verdadeiros das coisas, e como usar os nomes dessas coisas.” (Atuan, cap. 9)



Outra presença forte na trilogia é a dos dragões, que em Le Guin não são meros monstros: são criaturas antiquíssimas, dotadas de pensamento, linguagem e recursos mágicos próprios. Como se fossem velhos feiticeiros metamorfoseados em serpentes de fogo.

Dizia Ursula que as pessoas que não acreditam em dragões acabam sendo devoradas por eles, só que de dentro para fora. Seus dragões são ferozes e indecifráveis; ora amistosos, ora predadores. Nem todos os Magos são capazes de dialogar com eles; os que o conseguem são chamados de Dragonlords.

Quando o sol começou a brilhar sobre a neblina do Leste, as minúsculas partículas douradas que Arren tinha visto à distância pareceram cintilar, como ouro em pó arremessado sobre as águas, ou grãos de poeira num facho de luz do sol. E então Arren percebeu que eram dragões.
O barco chegou mais perto das ilhas e Arren viu que os dragões flutuavam no ar e descreviam círculos no vento matinal, e seu coração saltou junto com eles com alegria, com uma alegria cuja plenitude chegava a doer. Todo a glória da mortalidade estava naquele voo. A beleza dos dragões era feita de uma força terrível, com uma selvageria sem limites e a dádiva da razão, porque eles eram criaturas pensantes, eram dotados da fala, e de uma sabedoria ancestral: nos padrões do seu voo havia uma sincronização deliberada e feroz.
Arren ficou em silêncio, mas pensou: “Eu não ligo mais para o que acontecer de agora em diante: eu vi o voo dos dragões no vento da aurora.”
(Farthest Shore, cap. 10)

Num ótimo artigo sobre o ciclo de Terramar, David Mitchell (o autor de Cloud Atlas) lembra que num romance de fantasia heróica, como são estes de Ursula Le Guin, o mais difícil é equilibrar o estilo literário e a voz narrativa. “Escrever fantasia de qualidade,” diz ele, “é muito difícil, porque é um terreno saturado de clichês verbais.” É preciso evitar no leitor a sensação de estar preso dentro de um parque temático, e por outro lado evitar uma linguagem tipicamente contemporânea. Uma história de fantasia pode vir abaixo por inteiro se um personagem disser algo como “maneiro demais!”.