segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

4307) Como sinalizar a narrativa (22.1.2018)



Há um gancho narrativo dos mais elementares e que sempre funciona. Por isso mesmo, deve ser usado com parcimônia, porque depois da terceira vez o leitor pensa, meio sem pensar, “ih, lá vem isso de novo”.

Suponhamos o seguinte trecho de um romance:

“Smith deixou as coisas no hotel, lanchou num bar, assistiu um filme, e de noite foi para a orla da praia, onde pessoas caminhavam, andavam de bicicleta, passeavam com as crianças. Ele lembrou daquela vez, há mais de dez anos, em que ele e Marybelle tinham ido para a casa dos amigos na Flórida.

Marybelle. Fazia tempos que não pensava nela. Onde estaria naquele momento, morando onde, fazendo o quê?  (Etc e tal).

O gancho consiste em mencionar o personagem, e usar o nome como uma espécie de crachá abrindo o parágrafo seguinte.

Esta manobra informa ao leitor que estão saindo do continuum de ação para o de digressão e memória.  

Abrir assim um parágrafo, anunciando um nome de pessoa, um lugar específico, um fato ou uma época (“Ah, aquelas férias na montanha com os primos!”). Basta isso para que o leitor ressete a bússola mental e acompanhe a narrativa sem nenhum percalço.

O leitor consegue acompanhar a mais absurdista das histórias, se a narração dela tiver um mínimo de sinalização narrativa coerente.

Aí estão Campos de Carvalho, Robert Sheckley, Ionesco, Jarry. Nesses livros acontecem somente coisas bizarras, mas o leitor não tem o menor problema em acompanhá-las.  Seu problema é quando a sinalização narrativa funciona de outra forma, como em Joyce ou como o Catatau de Paulo Leminski, que são fluxos de frases pouco consequenciais.

Quando não existe essa sinalização visível, o leitor tem a sensação de estar o tempo todo recomeçando do zero. Ele não armazena narrativa; cada frase lida desaparece sem criar uma continuidade, e ele se sente o tempo todo de mãos vazias.

Já vi leitor reclamar de certos livros vanguardistas: “O cara fica o tempo todo taxiando e não decola.”  É uma descrição perfeita. O “decolar” que o leitor espera é o arrebatamento de uma narrativa onde ele sinta que alguma coisa está acontecendo e que ele (leitor) está conseguindo acompanhar.

Leminski... Os dois romances publicados pelo poeta curitibano (Agora é que são elas, Catatau) são muito diferentes, e nenhum dos dois obedece a essa estilística.  Poderíamos chamar essa estilística mais convencional de  “estilística de best-seller”, se isso não passasse a idéia errônea de que livros assim vendem mais do que os outros. Não vendem. Apenas são livros mais fáceis de entender, porque o autor vai sinalizando o rumo para o leitor, usando artifícios assim.

Como aquelas bandeirolas que o pessoal finca nas trilhas entre terras pantanosas, avisando aos transeuntes: “venha por aqui”.

O leitor precisa de continuidade, precisa saber onde está pisando, mesmo que a paisagem em torno seja de árvores desconhecidas ou surreais.

Esse recurso de usar um termo para transferir o parágrafo seguinte se assemelha ao recurso que o cinema usava antigamente para introduzir um flashback, uma cena de rememoração.

O sujeito estava sentado num banco do calçadão da praia. Alguém ao lado dizia: “Você está tão pensativo...”  E ele dizia: “Estou lembrando de quando estive na Flórida com uma antiga namorada. Marybelle.”

A câmera se aproximava devagar do rosto dele, que ficava em silêncio, com o olhar perdido; a imagem começava a ondear, como se estivesse sendo vista através de uma água em movimento; e surgia em fusão a imagem de outra praia ensolarada ou enluarada (para fazer contraste com a praia do presente) e o personagem, mais jovem e com roupa mais jovem, andando de mãos dadas com uma moça.

Isso fez parte da gramática do cinema durante dez mil anos, mas a narrativa mais moderna, de cortes rápidos, transferiu esse recurso para a prateleira dos clichês com prazo vencido. Hoje o cara abre uma gaveta, pega uma foto de praia, a câmera mostra a foto, e no segundo seguinte já estamos na praia do passado – sem preparação, sem aviso. E o público entende. Por que? A sinalização mudou. No cinema, desde os filmes de Jean-Luc Godard.

Godard. Ele próprio, que era tão iconoclasta, sabia que nenhuma sinalização funciona para 100% das pessoas. Eu sou um leitor tarimbado e acho esse recurso do “parágrafo anunciado” o ó, mas sei também que para muitos leitores ele ajuda a transição entre duas faixas mentais.