Foi uma troca de posts que vi anos atrás numa rede social. Alguém fez a postagem inicial dizendo algo como:
“Gente, estou muito feliz. Meu conto XXXX foi antologizado por Fulano de Tal e será publicado este ano pela editora YYYYY”.
O primeiro comentário que veio ao post foi de alguém dizendo: “Essa palavra ‘antologizado’ existe?”. E o cara respondeu: “Você acabou de usá-la. Vou responder o quê?”
Escrevo estes comentários aqui resistindo à tentação de ir ao Dicionário Houaiss e checar. Não
preciso. A palavra existe sempre que é usada, e se o dicionário não a registra,
é só questão de tempo.
Eu
posso, por exemplo, dizer que existem palavras desdicionarizadas, e se o
dicionário não registra esse adjetivo cujo sentido é óbvio e se auto-explica, o
problema é do dicionário, não meu ou seu.
E
na verdade entendo a estranheza da pessoa que fez a tal pergunta. Ela
certamente passou pelo mesmo moedor-de-carne por que eu passei quando era
pequeno: a obrigação férrea de falar certo, escrever certo, não cometer erros nunca,
pra não ser reprovado, pra que ninguém mangasse de mim, pra que ninguém usasse
meus erros de português como prova de minha inferioridade social e me cassasse
tais e tais direitos.
A
educação é um moedor de carne, sim, um moedor de carne mental que acaba nos
convencendo de que linguagem é como dinheiro. Como todo mundo sabe, só quem
pode emitir moeda e fabricar cédulas relativas ao padrão monetário vigente é o
Estado, através da Casa da Moeda ou similar. O Estado simplesmente não pode
permitir que cada pessoa imprima suas próprias cédulas para fazer compras na quitanda.
Imagina o caos.
Pois
bem, esse caos existe na linguagem, porque não cabe ao Estado (ou a algum dos
seus prepostos) criar as palavras e depois distribuí-las entre a população.
Pelo contrário. A população imprime suas palavras. Faz isso meio de improviso,
no burburinho das calçadas e das feiras livres, dos balcões de bar e das salas
de aula, na sociabilidade da mesa e na intimidade da cama. O Estado não tem
nada a ver com isso.
Ou
melhor, tem, e para isto há um esforço conjugado de escolas, faculdades,
academias, editoras, institutos públicos e privados que unem esforços para
disciplinar um pouco o caos linguístico evitável. Surge então essa entidade
mítica chamada “o Dicionário”.
Para
algumas pessoas, é um manual de referência, um índice do mundo real, como um
guia telefônico. Para outros, é um microcosmo do universo, e se não está em um
é porque não existe no outro. A pessoa excessivamente meticulosa só se sente
autorizada a usar uma palavra se o dicionário a tiver legalizado. Se não, ela
fica ansiosa, como se estivesse passando adiante uma cédula falsa.
Existe
o verbo antologizar? Eu defendo que sim, até porque, ao contrário de tantos
termos, é uma palavra autoexplicativa. Antologizar é incluir em antologia. Eu
antologizo, tu antologizas, ele antologiza; nós antologizamos, vós
antologizais, eles antologizam. Bastante intuitivo, fácil de usar. Qual é o
problema?
“Ah,
mas não existe no Dicionário, então não estou autorizado a usar”. Amigo, o
dicionário não autoriza nada, porque nenhum dicionário esgota o assunto. Achar
que um dicionário estão indexadas todas as palavras da língua é como imaginar
que em algum lugar existe uma lista alfabética de todos os brasileiros. Mesmo
que alguém se dispusesse a fazer esse despropósito, seria um despropósito-em-progresso
por toda a eternidade, precisando ser atualizado a cada segundo.
Um
bom dicionário registra talvez um terço das palavras que circulam no país,
porque fica de fora dele uma quantidade impressionante de gírias, corruptelas,
variantes locais, jargões de grupos, termos científicos e técnicos. O
Dicionário é um corre-atrás permanente, tentando registrar o que é possível,
mas sabendo que é um cobertor curto. Nunca vai cobrir tudo.
Não
sei se os dicionários já estão registrando expressões recentes, e que não me
agradam muito, como “empoderamento”, “inicialização”... Pelo meu gosto pessoal,
não o fariam. Pelo meu senso de justiça, as palavras já devem estar lá, porque
existem, independentemente de eu gostar delas ou não. Meu gosto pessoal não
conta. Nem o de ninguém. São os falantes da língua que reinventam a língua
todos os dias.