Falei algum tempo atrás neste blog sobre a figura de
Almirante (Henrique Foreis Domingues), radialista, cantor, compositor, um
desses personagens fundamentais na história da música popular e do rádio no
Brasil.
Almirante criou programas de variedades escutados pelo
Brasil todo. Colecionava informações sobre cultura popular, cultura oral,
folclore, histórias, crendices, costumes, superstições. Seu arquivo pessoal
acabou se transformando no Museu da Imagem e do Som, no Rio.
Incrível!
Fantástico! Extraordinário! era um programa radiofônico com histórias
verdadeiras de assombração. Quando eu era pequeno, meus pais tinham esse livro
das Edições O Cruzeiro, com um longo prefácio falando da importância dos contos
de fantasmas, e uma série de “relatos autênticos” que foram dramatizados no
programa.
No começo eu tinha medo até de tocar nesse livro. Quando
estava em cima de um móvel e eu precisava mexer nele por alguma razão, eu
pegava qualquer objeto comprido (uma régua, um cabo de espanador) e o
empurrava. Pra não tocar.
Depois cresci, perdi o medo e li o livro todo. Minha história
preferida era “A Companheira Macabra”, história de um cara (talvez um estudante
de Medicina) que pega uma caveira humana de verdade e a leva de bar em bar,
bebendo e dando bebida à caveira. Depois ele encontra uma mulher linda e
misteriosa que começa a fazer-lhe companhia. E por aí vai.
Quando vim morar no Rio, encontrei essa primeira edição
na Biblioteca Nacional.
E depois, em 1989, a Editora Francisco Alves compilou um
segundo volume dos casos relatados por Almirante, com prefácio de Sérgio
Cabral. É este exemplar o que tenho comigo hoje.
Os casos eram enviados pelos ouvintes, no Brasil inteiro.
Histórias no perfil tradicional do conto de fantasma brasileiro. Uma pessoa que
é vista depois de morta, ou no instante em que está morrendo bem longe dali. Pessoas
que prometem “fazer uma visita”, morrem, mas vêm cumprir a promessa. E assim
por diante.
Como escritor, essas histórias não me interessam, porque
a mecânica é sempre a mesma: alguém vê a “alma” de uma pessoa que já morreu, e geralmente
isso acontece para “dar uma lição de moral” aos vivos.
Alguns contos, no entanto, têm leves variantes que
poderiam servir como ponto de partida para um argumento de ficção.
Como em “Fenômeno de Levitação”, ocorrido em 1949 na
estrada Rio-Petrópolis. Um casal se hospeda com a filha pequena, Fanny, para
pernoitar à beira da estrada. De noite, dão por falta da menina. Dão o alarma.
Vem polícia, vem bombeiro, mais de 100 pessoas buscando a criança sumida. E o
autor conclui:
A verdade é que minha querida Fanny, às quatro e meia da manhã do dia
27 de julho daquele ano de 1949, foi encontrada lá embaixo no fundo de um
despenhadeiro de uns 80 metros, a mais de 200 metros da casa! Lá estava ela,
num ponto dificílimo de ser alcançado, calmamente, sentada, sem um arranhão,
sem um ferimento, tão sossegada como se estivesse em sua caminha...
Gosto quando a “vingança” do defunto se dá por outros
meios. Em “O Retrato” (caso de 1944), duas irmãs, Elvira e Leonor, eram
brigadas; odiavam-se, e não se falavam mais. Leonor morre e anos depois Elvira
encontra o ex-cunhado, que lhe pede uma foto da falecida. Elvira vai buscar e
percebe que a foto está intacta, mas Leonor não aparece mais nela. Foi
apagada. E conclui:
Seu ódio é tão forte que nem quis deixar com a irmã uma lembrança do
que fora em vida.
Dramaturgicamente, o clichê do “fantasma que aparece”
poderia ser substituído com vantagem pelo “fantasma que faz desaparecer as
coisas relacionadas com a sua vida na Terra”.
Gente morta que aparece a gente viva me parece pouco
interessante. Mais intrigantes são mistérios que ocorrem sem nenhuma morte
envolvida, como em “A Irmã Ausente”, um caso de 1914 na Bahia.
Um casal tem cinco filhas e, por problemas de saúde,
precisa deixar três delas passando um tempo em casa de parentes distantes. Um
dia, “M.”, uma das duas crianças que ficaram, afirma que uma das irmãs
ausentes, “Si”, apesar de distante apareceu de repente na casa, e ao vê-la assustou-se.
Dias depois a mãe fala com a família onde “Si” estava
hospedada e ouve o relato assustado:
Então foi um caso de telepatia, de transmissão de pensamento, pois
ontem à noite a Si deitou-se naquele sofá e adormeceu. De repente, ela deu um
pulo e acordou toda espantada. Perguntei o que houve, se ela estava com alguma
dor e ela respondeu que não, que estava sonhando com a M. E que, quando a irmã
chegou perto dela, assustou-se e acordou...
Pode ser telepatia mas pode ser também uma dessas dobras
do espaço-tempo em que por uma fração de segundo dois pontos distantes se tocam
(como quando vamos dobrar um lençol, pegamos duas quinas distantes e as
juntamos uma com ao outra).
As histórias de assombração mais interessantes são as que
não têm lição moral, nem exemplo humano, nem valor afetivo, nem catarse emocional.
São simplesmente inexplicáveis, como o caminhão carregado de latões (que
balançam sem fazer barulho) e sem ninguém ao volante, que repetidamente
ultrapassa outro veículo numa estrada deserta à noite (“O Caminhão Fantasma”,
1952) ou o caminhoneiro que ao chegar perto de uma ponte resolve parar no
acostamento para tirar um cochilo, desliga o motor, apaga os faróis... e acorda
quatro horas depois, mais de 20 km à frente, com o carro ainda desligado (“A
Ponte Sinistra”, 1949).
A história de terror tem geralmente o viés, o cacoete, a
mania de ser um conto moral, quando poderia ser uma investigação dos bugs, dos
“glitches”, dos maus-funcionamentos das leis do Universo; dos erros da Matrix.