Neste ano completam-se 25 anos de lançamento deste livrinho fora-de-esquadro de Wilson Bueno, Mar Paraguayo (São Paulo: Iluminuras, 1992), surgido sem alarde, mas que durante esse período manteve uma presença inquietante na atenção e na memória de muitos leitores.
Presença reforçada agora com as matérias de capa feitas
pelo periódico Cândido (mês de maio
2017), da Biblioteca Pública do Paraná. Mar
Paraguayo é um volume de menos de 100 páginas, e sua curiosidade principal
é o multidioma em que foi escrito.
O livro tem, misturadamente, trechos em português,
espanhol, guarani e um meta-portunhol que a rigor não pertence a nenhuma dessas
três “línguas de verdade”, cujas ortografias e gramáticas foram juntas pro
espaço. A prosa do autor transita pelas três línguas sem pagar pedágio a
nenhuma.
Tive um breve contato com Wilson Bueno quando ele editava
a revista literária Nicolau em
Curitiba e publicou um texto meu (no. 26, 1989). O lançamento deste
livro, alguns anos depois, foi comentado na imprensa com a surpresa inevitável
diante de um livro de idioma não apenas misto, mas “bárbaro”, e as comparações
inevitáveis com o também curitibano e “bárbaro” Catatau (1975) de Paulo Leminski.
Mar Paraguayo é
basicamente o monólogo de uma mulher que se defende de uma possível acusação de
assassinato pela morte de um “velho” com quem ela vivia. Um “viejo” lúbrico mas impotente:
(...) el sexo de total impossibilidad. El deseo en el contudo segue
existindo como una pierna amputada que prosseguisse coçando. (p. 20)
Um bordão recorrente do livro é a afirmação de que “eu não matei el viejo”, embora ela
confesse o tempo todo que o traía e que era apaixonada por “el niño”, um rapaz mais jovem e atlético que lhe faz uma caridade
de vez em quando e por quem ela é arriada dos quatro pneus.
...hay que devorarlo a el siempre imprevisto: dibujado en la tanga su
sexo ostensivo: mas sobretodo los ojos verdes contra la cara de risa y sol: lo
tórax en los embates del viento y del lamiento: a bailar en la siesta: sueño:
soy su araña: álgebra: pronta jibóia: toda me enlambe su língua destra: todo lo
unto de cuspo y baba: humores: suores: los miasmas: espasmos: la siesta me pone
abrasado el útero profundo: (...) (p. 47)
E este recurso do “dois pontos”, usado com frequência ao
longo do texto, transforma-o num trajeto sem fim de corredores que desembocam
em corredores, ou frases completas que veem brotar de dentro de si frases
maiores, como bonecas russas às avessas. É um recurso de pontuação ainda mais
vertiginoso do que a mera vírgula das enumerações comuns.
A narradora sem nome vive com o “viejo” no balneário de
Guaratuba, por onde “el niño” desfila seu físico de surfista, e ela, sabendo-se
suspeita da morte do velho, desfila seu rosário de explicações que tanto a
justificam quanto mais a incriminam.
Ela se confessa velha, feia, gorda, mas indomável:
“madona macunaíma” (p. 66), “puritana
putana” (p. 60)
...pero nunca que abandoné mis vicios necessários e insubstituíbles en
troca de estas cosas desatinadas de la estetica y del capricho. (p. 65)
O ciúme do rapaz a corrói por dentro quando ela pragueja
contra as bonitinhas da praia:
...casi impossible debujar lo que sea su boca entranhada en la boca de
esta chica ordinária, que se va en vano por las playas, que exibe sus tangas
ecandalosas y de resto vulgares, ai que ya deseo mi madre, ai que es
intransponível viver, casi imposible debujar como su piel que es mi piel toda
se eriçe por esta niña sin imaginación o personalidad que es apenas un
cuerpo-de-miss y nada más. (p. 52)
O velho a sustentou por um tempo, foi seu arrimo, depois
virou um peso, e não há leitor que duvide que ela teria sido capaz, sim, de dar
cabo dele, nem que fosse para ficar
...en nesta casa que la muerte del viejo me legô – assim como uno
triunfo desnecessário. Lo mismo lo digo de nuestra conjunta corriente conta en
el Banestado – en todo sentido, fundamental. (p. 51)
O que a narradora-confessional consegue, no entanto, é
redimir-se e transcender-se via linguagem, porque sua prosa impura, ou
“impúrpura” (como diria Chico César) é de um furor poetizante que bota abaixo
as regras e se impõe pela mera força do desejo verbalizador:
Ah, mi felicidad es un cristal ante el sol, advinadora esfera cargada
por el futuro como una bomba que se va a explodir en los urânios del dia. (p.
15)
Que terror puede ser la beleza! (p. 26)
El susto es el agudo espectro del pânico, una cosa asi como se fuera su
íntimo fantasma, una cosa cerca de lo ante-ante-escabroso, el ante de los antes
de antes. Los ancestrales y los mayores. (p. 31)
Com certas “banguelas” ladeira abaixo num torvelinho
verbal vertiginoso onde não se sabe mais o que é memória, o que é léxico, o que
é invenção:
...como um juego-de-jugar: pimpirrota, piribela floral, loculho sierva,
cincinati, abrolhos, carmencinda, madressilva, pirilampos, antanas bástistas,
casamarilla, locos complutos, boludo lorgo, lacalhe-seda, amarelinhas,
esconde-atrás, noclins ereiras, marcha adelante, los cantantes juegos de rueda,
teresinas-de-jesus, las teresinas, entraçada gaucha, guapa glauchas,
catatéicos, constreros, filíciquis, rosaes, oscuro mistério de fábula original,
las tranças, las troupas, helicáreos rans, duncans, vitrinas, duendes, vagaus,
pilvos conscentes, broquílides silfos, lunfens de lérias, lunfens vivaces, como
um juego-de-jugar (...) (p. 35)
(...) la fala ancestral de padres y avuêlos que se van de infinito a la
memoria (p. 42)
A marafona do balneário é uma dessas entidades narradoras
sem físico, só voz, cujo corpo invisível vai sendo tornado concreto pela voz
com que fala, como o do narrador do clássico “Meu Tio, o Iauaretê” de Guimarães
Rosa (1961; em livro, 1969), que é outra narração em português malassombrada
por indigenismos em borbotão.
Experiência rara de prosa poética multilíngue, o livro e
o seu autor são comentados no Cândido
em artigos de Márcio Renato dos Santos e Luiz Manfredini, revelando a fortuna
crítica que se amplia aos poucos ao seu redor, em estudos de Antonio R.
Esteves, Douglas Diegues, Sérgio Medeiros, Carlos Henrique Schroeder e outros.
Além das traduções do livro na Argentina, México, Chile e EUA.
No sê, solamente lo que miro al derredor es esto lento abismar-se del
sol en el mar, suprema rueda de fuego y metal a la manera de una herida abierta
en los pentimientos del cielo. (p. 50)
Que es el amor? Una solitária rosa en el desierto? Ô el simples
sentimiento odioso de que es impossible, de que es impossible uno vivir sin que
caiga y se levante, sin que levante-se y se caiga de nuevo, recorriente... (p.
53)
...ô ya sea mordida por el escorpión vivo de la autêntica felicidad. (p.
52)