Eu estava no meio de uma viagem com
um grupo de cantadores, e tivemos que pernoitar no Recife para prosseguir no
dia seguinte. Estava todo mundo exausto depois de horas de ônibus na estrada. Eles
estavam fazendo cantorias e eu acompanhando, assessorando, peruando,
compartilhando a embriaguez do verso.
Fomos pernoitar em Olinda, nos
alojamentos da Casa das Crianças, a fundação de Giuseppe Baccaro, que fornecia
quartos gratuitos para violeiros de passagem.
Chegamos lá por volta das onze da
noite. Não era tão cedo que permitisse descansar um pouco e depois ir pra
farra, nem era tão tarde que a farra ficasse inviável. Decidimos deixar ali as
malas e as violas, e sair para beber.
Não lembro exatamente quem eram os
outros do grupo; talvez Oliveira de Panelas, Sebastião Dias, Bandeira Sobrinho...
E o protagonista da história, João Furiba, um dos cantadores mais queridos e
mais engraçados de sua geração. Está hoje com 90-e-bote-força.
Baixinho, magrinho, meio feioso, cheio
de dentes de ouro, Furiba tinha a fama de conquistador inveterado por onde
passava. Nas cantorias apregoava riquezas babilônicas:
Sofri um pequeno atraso
porque tive de emprestar
para o presidente Reagan
minha Ferrari sem par,
só fiquei com o Rolls Royce
que anda mais devagar.
Nessa noite, Furiba estava mais
cansado do que os outros e resolveu não sair.
– Não, Deus me livre. Estou morto.
Vão vocês se divertir, eu vou é dormir um sono.
Como estávamos chegando ali meio de
supetão, foi preciso combinar com o poeta Palito, que era meio administrador
das coisas, o local de dormida para todo mundo. Ele indicou nossos quartos, e
foi mostrar o de Furiba.
– Furiba, quem estava nesse quarto
era Zé Gaspar, mas ele foi pra uma cantoria e só deve voltar amanhã. Afaste as
coisas dele, e durma.
Os quartos da Casa das Crianças eram
pequenos, simples. Furiba levou para lá sua maleta, a viola e uma melancia que
tinha comprado para levar pra casa. Despediu-se de nós e foi dormir. Deixamos nossas
bagagens nos outros quartos e fomos em busca de algum lugar com comida quente e
cerveja gelada.
Fomos parar num daqueles botequins
de calçada, de frente pro mar. Bebemos um monte de cervejas e comemos uma carne
de sol que pra cortar foi preciso pedir uma serra de pão. Lá pelas duas da
manhã voltamos para a Casa das Crianças.
Assim que passamos do portão vimos no
escuro uns vultos que tinham chegado pouco antes de nós. Iam mais à frente nas alamedas,
rodeando os gramados e subindo a encosta rumo aos quartos. Pelas vozes, e pelos
vultos, quando chegamos mais perto, reconheci alguns deles.
No meio vinha Zé Gaspar. Que àquela
altura já estava batendo com força na porta do quarto.
– Ei, caba safado, esse quarto é
meu! Sai daí, misera!
Fomos chegando e tentando explicar
que quem estava ali era Furiba. Foi pior.
– Esse mentiroso safado? Ele tá
pensando o que? – Zé Gaspar, visivelmente, tinha tomado umas-e-outras e devia
estar ansioso para desabar no colchão. – Bora, nojento! – E tome murro na porta
– Abre essa porra aí, seu corno, esse quarto é meu!
Com a minha vocação para
Itamaraty-de-cantador, eu me interpus:
– Calma, Zé, vamos chamar ele e a
gente resolve isso sem problema.
Zé Gaspar é um caboclo entroncado,
musculoso, daquele tipo que desatola sozinho um carro de boi. Ele me encarou
furioso:
– Isso é BT? O que diabo você tá
fazendo em Olinda?
– O mesmo que você. – Bati na porta.
– Furiba véio, abra aí pra gente conversar.
– Eu não dialogo com trogloditas –
veio a voz lá de dentro, magrinha de medo.
– Furiba, o quarto é dele, ele quer
as coisas dele. Qualquer coisa você passa pro meu, e eu vou embora. Eu tenho
amigos que moram aqui perto.
– Sai logo, seu corno! – bradou Zé
Gaspar em nova investida, me arremessando de encontro à porta. Bandeira
Sobrinho e Oliveira tiveram dificuldade para contê-lo. – Eu tenho dinheiro
guardado aí! Se tiver faltando um cruzeiro, o diabo vai se soltar.
A essa altura nem sei se era
cruzeiro naquele tempo, mas tanto faz. Furiba retrucou, na segurança da porta
fechada:
– Já me chamou de corno e de ladrão.
Desse jeito eu vou acabar me aborrecendo.
Zé Gaspar tinha se soltado dos
outros e bufava, olhando para os lados, como quem está reunindo forças para
invadir Tróia. Bandeira Sobrinho tirou os óculos, soprou neles, botou de novo,
alisou o bigode e disse:
– Eu sabia que isso não ia dar
certo.
Nesse momento a luz do quarto se
acendeu, a porta se abriu, e no umbral apareceu João Furiba, no pleno vigor do
seu metro-e-sessenta e de seus 50 quilos, nu com exceção de uma Zorba
verde-limão e meio frouxa, empunhando um canivete em riste e proclamando:
– A honra se lava com sangue.
Zé Gaspar partiu pra cima dele como
um miúra, e nós todos nos engalfinhamos, rodamos levantando poeira e de repente
alguém deu uma rasteira em alguém e o bolo de gente rolou pelo chão por entre
sopapos e impropérios. Eu senti uma dor no cotovelo, me despreguei da confusão
e fiquei de pé.
Eles foram se soltando e se
levantando. Ergui a mão: era sangue. A queda tinha arrancado um samboque do meu
cotovelo. Bandeira me estendeu um lenço:
– Tome, poeta, pra estancar.
– Vou estragar teu lenço – disse eu.
– Deixa pra lá. Já tá cheio de
catarro mesmo...
Apliquei o lenço no ferimento, mas a
essa altura Palito já havia chegado providencialmente com uma solução, e até Zé
Gaspar estava rindo, enquanto Furiba permanecia na porta em plena Zorba e de
canivete em punho, e dizendo:
– Não mexa comigo não, que eu sou
perigoso.
A noite acabou nos levando de volta
aos bares, para baixar a adrenalina da briga.
Paramos nos Quatro Cantos, onde tinha numa calçada uma turma conhecida
tocando violão, era Don Tronxo, Romero Mamata, aquele pessoal que vivia por
ali. Emendamos as mesas e mais tarde eu já estava bebo, com o lenço amarrado no
cotovelo, fazendo sextilhas com Zé Gaspar, e desta noite me sobrou essa pérola:
Tem certos dias na vida
que nada-nada dá certo
a cisterna do desastre
ficou de registro aberto
quando alguém me dá bom dia
eu digo: saia de perto.