quinta-feira, 31 de agosto de 2017

4265) O roteiro e a história (31.8.2017)




("A lista de Schindler")


Um artigo que recente de Tim Long discute uma das normas de roteiro que eu vejo apregoadas com mais frequência. E apregoada com razão, digo logo antes de combatê-la.

É aquela norma que diz mais ou menos: “Só escreva no roteiro o que pode aparecer na tela.”  Só escreva o que pode ser captado por uma câmera e um microfone, ou seja, o que pode depois ser visto e ouvido pelo espectador.

Uma defesa bem humorada e bem fundamentada desse princípio é feita por Hugo Moss no seu esguio e indispensável Como formatar o seu roteiro (Rio: Aeroplano, 2002, 32 págs.). Diz ele:

Outro erro comum, além de (d)escrever demais, é incluir fatos que dificilmente são possíveis de capturar com a informação disponível na tela. Ex.:

EXT. ESTRADA – DIA
Um carro desce uma estrada em direção ao Rio de Janeiro. Dentro, um grupo de músicos, cujo cantor é um homem escuro com cabelos curtos, como um punk do Terceiro Mundo. É Jorge Salgado, que está chegando ao Rio para fazer dois shows gratuitos na praia da Ipanema.

Evidentemente, vendo só um carro descendo uma estrada, é difícil imaginar como a audiência poderá saber detalhes sobre os ocupantes, muito menos adivinhar o motivo específico da viagem. Essas informações teriam que ser inseridas na história de uma outra forma (visual), se é que são fundamentais, e se não, serem descartadas.

Em momentos assim, nós, roteiristas, nos deixamos arrebatar pela embriaguez narrativa e começamos a contar a história com palavras, como se fosse um romance, ao invés de simplesmente descrever uma sucessão de imagens e ações visuais.

Esses aspectos subjetivos contaminam incontáveis roteiros, uns mais, outros menos, mas sempre deixando que o modo literário de narrar vaze para dentro do roteiro, que não admite muitos dos seus recursos.

O próprio Hugo Moss se oferece logo adiante para pagar um almoço para quem reconhecer o filme em cujo roteiro lê-se esta indicação:

Geraldo bota o chapéu, faz um movimento imperceptível com a cabeça e sai.

Filmar um movimento imperceptível é um dilema para um diretor (pra nem falar no pobre do ator que precisa executar esse paradoxo quântico).

São literatices, e nenhum de nós está a salvo delas. E não pertencem apenas ao cinema; infiltram-se em outras formas de escrita, inclusive no teatro. Wilson Martins, criticando o teatro brasileiro oitocentista, registra o heroísmo requerido ao ator que numa peça qualquer vê-se solicitado a obedecer a esta rubrica: “Fulano (empalidecendo) - ...

É o cacoete do romance, de um outro tipo de narração infiltrando-se onde não é chamado.

Mas... nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Tendo dado razão a Hugo Moss, num extremo, preciso dá-la igualmente, no extremo oposto, a Tim Loing, neste texto no saite No Film School:


Long começa logo dizendo que “não existe uma única maneira correta de produzir um roteiro”, e que tudo que funciona pode ser utilizado, e que muitos roteiristas deixam-se dominar a tal ponto pelo conceito de “regras” que não conseguem pensar fora delas.

A maioria das regras da narrativa cinematográfica surgiu num certo momento através de artistas que estavam tentando se livrar das regras anteriores.

Long questiona a máxima de que “só podemos escrever o que pode ser visto ou filmado”, e cita o recho de roteiro abaixo, de Steven Zaillian para A Lista de Schindler:

EXT. – BALCÃO DE GOETH – MOMENTOS DEPOIS – MANHÃ
Goeth sai ao balcão vestindo apenas camiseta e calção, e dali fica contemplando o campo de trabalhos forçados, seu campo de trabalhos forçados, seu reino. Satisfeito com essa visão, até um pouco espantado, ele faz lembrar Schindler olhando para seu próprio reino, sua fábrica, tal como ele gosta de fazer através de sua parede de vidro.

A vida é maravilhosa. Goeth empunha um rifle.

De minha parte, acho necessário que o autor do roteiro informe, ao diretor, elenco e equipe, os sentimentos que devem existir por trás de cada cena. Não creio que isso seja a cobrança de uma nuance impossível de filmar; nem que seja uma exigência abstrata que o ator não tem como cumprir. Existe um pensamento, um clima, uma emoção subjacente à cena. Cabe aos membros da equipe que leem o roteiro encontrar um modo de passar isto para o espectador, cada qual com seus recursos.

Outro exemplo dele, desta vez de Barry Jenkins, no premiado Moonlight:

KEVIN
Onde você vai dormir esta noite?

Nenhuma resposta de Black. Nada, nem palavras, nem gestos, nada brota dele nesse momento.

Black devia estar dirigindo, devia estar com os olhos na estrada, prestando atenção nos outros carros, nas coisas que passam. Em vez disso, seus olhos estão em Kevin, encarando de volta o homem que está perdido nessa pergunta, e o espaço entre a pergunta e esse instante é a resposta mais clara.

Kevin afasta o olhar, volta a olhar pela janela. A terra acabou de se mexer. Os dois homens sentiram.

Eu imagino que dois bons atores, lendo isto, sejam capazes de absorver a tensão e as hesitações psicológicas de uma curta cena como esta – e transpor para a tela alguma coisa do que está aí. Metáforas como “a terra se mexeu” provavelmente não virão a ser percebidas jamais pelo público, mas os atores podem com sua atitude, suas expressões, transmitir para o espectador algo igualmente ominoso, igualmente crucial.

Long nos lembra que os primeiros leitores de um roteiro não são os atores que vão interpretá-lo, e sim pessoas para quem é preciso dar uma idéia do tipo de filme que está sendo proposto. São agentes, empresários, executivos de desenvolvimento de projetos, pessoas por cujas mãos passam as primeiras propostas de um roteiro.

Long se refere em seu artigo a “spec writers, spec scripts”: roteiro especulativos, digamos, aqueles que são oferecidos a um estúdio, em vez de serem encomendados por este. Um roteiro não encomendado, oferecido por um profissional de fora, está provavelmente contando uma história que os destinatários desconhecem. É preciso deixar claro que história é essa.

Tim Long remete o leitor a outro artigo:


Ali, ele diz:

Para que seu roteiro se transforme num filme, as pessoas têm que primeiro gostar dele como uma história.

Esta primeira versão, que irá circular por muitas salas e muitas escrivaninhas e muitos monitores de gente desconhecida (sem o autor do lado para tirar dúvidas) precisa dizer com clareza suficiente tudo a que se propõe. Claro que a estrutura narrativa tem que ser de filme, a visualização tem que ser de filme. Mas motivações, intenções, nuances, reações emocionais, têm que vir bem explicadas. O bom roteiro indica o efeito a ser obtido, e o modo de obtê-lo.

E se um ator ou atriz geralmente não gosta de receber instruções do roteirista sobre como reagir em tal ou tal momento, ele ou ela gosta de saber o que se pede de seu personagem, que motivação íntima, que subtexto, que amálgama de influências e pressões, para que possam criar a cena do personagem, com seus próprios recursos.