Uma das formas menos estudadas da literatura fantástica é o que alguns críticos chamam de “romance absurdista”. Muitos inclusive não a consideram parte do fantástico, porque ela não corresponderia à famosa definição de Tzvetan Todorov: “Fantástica é qualquer narrativa que deixe o leitor incerto entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural para os fatos narrados.” Para mim, essa definição cobre uma parte importante da literatura fantástica – mas não toda. Eu chamo a essa parte “o Fantástico Todoroviano”.
Na literatura absurdista, podem aparecer coisas que
pertencem ao sobrenatural: animais que falam, mortos que ressuscitam, criaturas
bizarras, rupturas do espaço e do tempo, etc.
Em grande parte dela, no entanto, acontecem apenas fatos desprovidos de
lógica ou de explicação, comportamentos insensatos, acontecimentos caóticos,
enfim: nenhuma lei da natureza é violentada, apenas as coisas ocorrem de
maneira maluca.
A Encyclopedia of
Science Fiction (http://www.sf-encyclopedia.com/entry/absurdist_sf)
dá a seguinte definição, de Peter Nicholls & John Clute:
A palavra “absurdista” entrou na moda da terminologia literária depois
de ser usada consistentemente pelo autor e ensaísta Albert Camus (1913-1960)
para descrever ficções situadas em mundos onde parecemos estar à mercê de
sistemas incompreensíveis. Esses sistemas podem funcionar como metáforas da
mente humana – manifestações externas daquilo que J. G. Ballard descreve quando
usa o termo “espaço interior” – ou podem funcionar como representações de um
mundo externo cruel e arbitrário, no qual as nossas expectativas de coerência
racional, seja da parte de Deus, seja da parte de agências humanas, estão
condenadas à frustração, como nas obras de Franz Kafka.
O absurdismo pode derivar na direção do sombrio (a
literatura de Kafka e Camus, o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David
Lynch) mas pode derivar também na direção de narrativas menos angustiantes e
com um certo humor. É o caso, para dar somente um exemplo, da literatura de Flann
O’Brien:
É o caso também do nosso Campos de Carvalho, autor de
quatro livros memoráveis nessa linha: A
Lua Vem da Ásia (1956), Vaca de Nariz
Sutil (1961), A Chuva Imóvel (1963)
e O Púcaro Búlgaro (1964). Os dois do
meio são mais sombrios; o primeiro e o último tendem ao absurdismo com humor.
A Lua Vem da Ásia
foi reeditado ano passado, em comemoração aos seus 60 anos, pela Ed. Autêntica,
de Belo Horizonte. É uma narrativa na primeira pessoa em que o narrador afirma
estar num hotel de luxo, mas logo percebemos, quando ele começa a contar sua
rotina diária, que está mesmo é num hospício.
A primeira parte do livro se intitula “Vida Sexual dos Perus”,
e os capítulos são organizados assim, por ordem de aparecimento: Capítulo
Primeiro, Capítulo 18º., Capítulo Doze, (Sem Capítulo), Capítulo sem Sexo,
Capítulo 99, Capítulo Vinte, Capítulo I (Novamente), Capítulo, Capítulo
CLXXXIV... E por aí vai. Na segunda parte, “Cosmogonia”, os capítulos são
indicados pelas letras do alfabeto, na ordem certa até o penúltimo (“N”), sendo
que o último se intitula “O. P. Q. R. S. T. U. V. X. Y. Z.”.
Os “hóspedes” do hotel vivem numa certa promiscuidade,
levam choques elétricos, recebem medicamentos, têm alimentação precária, estão
sempre às turras uns com os outros pelos motivos mais malucos.
Em alguns trechos o narrador põe-se a relatar sua vida
pregressa, que cobre décadas e mais décadas e transcorre, numa montanha-russa
de fatos extraordinários, em dezenas de países; é o caso dos Capítulos CLXXXIV
e 71 da primeira parte, e dos capítulos I e J da segunda, entre outros. Um
trecho do primeiro deles dá uma idéia dessa parte memorialística:
Em Cuzco tomei-me de amores por uma rapariga que não sabia uma só
palavra de árabe, nem eu tampouco, e pude manter-me dignamente à sua custa
durante alguns meses, até que o governo me deportou para a ilha de Sumatra num
cargueiro que levava lhamas, algumas buigigangas de grosseira fabricação e meia
dúzia de espiões comunistas. Da ilha de Sumatra pulei, não sei como, para a de
Madagascar, de onde alcancei a nado a costa de Moçambique, batendo todos os
recordes de distância, mas incógnito. (...) Quando dei por mim estava em pleno
coração da África Equatorial Francesa, caçando elefantes e traduzindo Virgílio
para o alemão, a pedido do padre Kremmer, que não sabia latim. Com a renda
obtida de quinze mil elefantes mortos e alguns leopardos empalhados
estabeleci-me em Brazzaville com um negócio de falsos diamantes e uma modesta
casa de tolerância, servida por três nativas e duas francesas já avançadas em
anos e que morreram logo depois. Vítima de injusta perseguição da polícia,
mudei-me atabalhoadamente para Leopoldville, que fica logo defronte, e onde,
fazendo-me passar por filho bastardo do rei dos belgas, obtive permissão para
me instalar com um novo prostíbulo, que se incendiou pouco depois.
E nesse tom ele vai, por páginas e mais páginas.
Martin Esslin, em seu clássico ensaio O Teatro do Absurdo (1961; saiu no
Brasil pela Ed. Zahar) situa o espírito desse gênero como o reflexo de uma
perda de sentido coletivo da civilização ocidental com a falência da visão do
mundo religiosa, que Nietzsche exprimiu no conceito de “Deus está morto” (Assim Falou Zaratustra, 1883). Diz
Esslin que a partir dessa época a humanidade começou a penetrar num mundo
“privado de um princípio integrador coletivamente aceito, o mundo que se tornou
desconjuntado, sem propósito – absurdo”.
Como o ensaio de Esslin é sobre a manifestação teatral
desse espírito, ele cita “o aspecto satírico e parodístico do Teatro do
Absurdo, sua crítica social, sua ridicularização de uma sociedade mesquinha e
inautêntica”. O mesmo vale para a prosa
de ficção, que bebeu em fontes semelhantes: os escritos de Alfred Jarry e Lewis
Carroll, a destruição da linguagem promovida pelos Dadaístas, as situações
amalucadas vividas pelos comediantes de cinema desde Buster Keaton até os
Irmãos Marx, os delírios literários de James Joyce, Guillaume Apollinaire,
Lautréamont...
Campos de Carvalho corre nessa mesma raia, com sua sucessão
de situações extravagantes, inverossímeis, constrangedoras, cheias de irrisão e
de falta de sentido.
Sem falar que é um excelente fazedor de frases, e em cada
página saltam trechos hilários e inesquecíveis:
Não há quem não venda a sua própria mãe por três milhões de florins. (p.
82)
A chuva dá de beber aos mortos. (p. 30)
Tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na
cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido. (p. 118)
Tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho,
que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo. (p. 97)
Consegui transpor a nado o estreito de Gibraltar, que não me pareceu
tão estreito quanto dizem. (p. 78)
Há instantes em que eu me sinto um chinês perfeito – Chiang O’Lyi, por
sinal – e me ponho a rememorar todos os meus antepassados milenários, com
rabicho e bigodes em forma de antena, captando o mistério que vem dos
subterrâneos do mundo. (p. 150)
Puxa, como passa depressa o tempo, e a gente dentro dele! (p. 142)
Os livros de Campos de Carvalho são livros de exceção em
nossa literatura, mas não são livros únicos. Talvez até por sua influência,
brotaram títulos igualmente absurdistas como Lugar Público (1965) de José Agrippino de Paula, Necrológio (1972) de Victor Giudice, Os morcegos estão comendo os mamãos maduros
(1973) de Gramiro de Matos (Ramirão Ão Ão), Confissões
de Ralfo (1975) de Sérgio Sant’Anna, Catatau
(1975) de Paulo Leminski, Malthus
(1989) de Diogo Mainardi, O Convento das
Alarmadas (1978) de Sérgio Martagão Gesteira, Paniedro (1981) de Herio Saboga e certamente outros.
Uma literatura do riso e do desespero, buscando seu
leitor:
Nesse livro aparentemente triste, eu me situo na posição de antípoda de
todos os seres com os quais vivo esbarrando-me pelas ruas ou mesmo dentro de
casa – o que talvez em parte explique meu contínuo peregrinar pelos quatro
cantos do mundo, à procura de outro polo no qual certamente houvesse um outro
antípoda à minha espera. (p. 169)