A literatura de terror, ou de horror, é muito variada. Comporta inclusive, como qualquer gênero, obras que não têm nada a ver entre si. Quando a gente pega dois daqueles livros que pertencem ao gênero de uma maneira bem periférica mesmo, fica difícil encontrar uma definição, uma fórmula única, que inclua os dois de maneira satisfatória.
É um
gênero que se define pela reação provocada no leitor, e não por uma convenção
narrativa. O romance de mistério, por exemplo, se baseia numa convenção
narrativa: acontece algo misterioso, e esse mistério será esclarecido no final.
Pode ser um crime, um desaparecimento, a descoberta de algo enigmático,
etc. Uma história de mistério continuará
a sê-lo se for humorística, aventuresca, assustadora, intelectual, romântica.
Já a
história de terror (ou horror) pode conter quaisquer elementos narrativos,
desde que a impressão produzida no leitor seja aquela. Isso gera algumas polêmicas interessantes,
como: Pode uma história humorística ser também uma história de terror? Uma história
pode provocar medo e riso ao mesmo tempo? Esse debate nunca vai se esgotar.
Os
grandes mestres do terror, no entanto, parecem às vezes buscar um efeito que
não é propriamente de medo, mas do que a língua inglesa chama de “awe”: o
espanto mudo diante de algo que ultrapassa nossa capacidade de suportar, de
entender. É uma forma do Inefável (=aquilo que não se consegue exprimir com
palavras), mas um Inefável tingido de assombro, de pequenez impotente. Seria,
num certo sentido, aquilo que em Estética se chama “o Sublime”.
“Sublime”
é uma palavra muito desvalorizada e distorcida, porque na linguagem cotidiana
dizemos “sublime mesmo é o amor de uma mãe pelos filhinhos”, “a visão sublime
de um roseiral coberto pelo orvalho do amanhecer”, esse tipo de coisa. Sublime não é nada disso.
O
Sublime é algo que ultrapassa nossa capacidade de entender e de suportar. Em sua
Iniciação à Estética (José Olympio,
2005; 1972) Ariano Suassuna comenta a visão de Emmanuel Kant a respeito do
Sublime:
Temos, então, do que
foi visto até aqui, que o Sublime resulta da inadequação das idéias do
contemplador a um objeto informe e desproporcionado da Natureza, objeto que se
apresenta ao espírito contra o interesse dos sentidos e causando uma sensação
misturada de prazer e de terror. (p. 177)
Comentando
a visão de Hegel sobre esse tema, diz Ariano:
(T)ambém para estetas
mais modernos, essa noção do terror, causado por uma simples meditação poética
sobre o homem diante do mundo e de seu destino marcado pela morte, é
característica essencial do Sublime. (p.
183)
Isso reafirma a idéia
de que a poesia reflexiva, ou filosófica, é, de todos os tipos de Arte, o mais
apto a causar, no homem, esse prazer intelectual misturado de terror que é o
Sublime. (p. 184)
Não vou
meter minha colher na Grande Arte, mas na literatura popular, que é meu
domínio, temos o equivalente disso nas obras de “terror cósmico” que exprimem o
medo e o deslumbramento impotente do ser humano diante de um Universo
incompreensível e pouco hospitaleiro.
Ninguém
exprimiu isso tão bem quanto H. P. Lovecraft. Mas Lovecraft não era apenas um
escritor de histórias sobre monstros ameaçadores. Descrevendo as paisagens da
Nova Inglaterra onde passou praticamente a vida inteira, ele diz, numa carta de
1927:
Às vezes eu tropeço
acidentalmente em raras combinações de encostas, ruas que fazem curvas, tetos
& empenas & chaminés & detalhes secundários de verde & de
paisagem ao fundo, os quais na mágica de um fim de tarde assumem uma majestade
mística & um significado exótico que está além do poder de descrição das
palavras... Minha vida inteira se dedica a capturar algum fragmento dessa
beleza oculta & inacessível; essa beleza toda constituída de sonho, e que
no entanto eu sinto ter conhecido muito de perto & nela me deleitado
durante éons sem fim antes do meu nascimento e do nascimento deste mundo ou de
qualquer outro.
Note-se
que o terror e o medo estão ausentes dessa citação, que ainda assim é
lovecraftiana até a medula. Lovecraft tinha, acima de tudo, esse “sentimento do
mundo”, essa janela mental aberta para o Sublime.
Era uma
janela também, aberta na mente de Jorge Luís Borges, autor desta outra
descrição muito citada:
A música, os estados
de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos
crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo nos disseram que
não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de nos dizer algo; essa iminência
de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético. (“A muralha e os livros”, 1950, em Outras Inquisições)
São
dois escritores de formações muito diferentes, mas com traços pessoais em
comum, exprimindo essa mesma sensação de saber ou perceber algo, ao contemplar
o mundo físico, que as palavras não conseguem exprimir.
A
comparação entre essas duas citações é feita por um seguidor contemporâneo de
ambos, o contista Thomas Ligotti, que justapõe as palavras de Borges e as de
Lovecraft para comentar um conto deste último, “The Music of Erich Zann” (no
ensaio “The Dark Beauty of Unheard-of Horrors”, em The Thomas Ligotti Reader, Wildside Press, 2003).
Usar a
música para se referir ao inexprimível-por-palavras é uma saída elegante para
um escritor. Falar de música na literatura é como falar das partículas
subatômicas. Nunca podemos descrever de fato o que são e o que fazem, apenas as
sensações indiretas que produzem em nós.
E onde
entra o Horror em tudo isso?
Comparando
essas duas citações percebemos que ambas exprimem um sentimento muito parecido.
Comparando a obra de Lovecraft com a de Borges, vemos que o Horror aparece na
primeira, mas não na segunda.
Eu
diria que o Horror nasce da conjunção entre o sentimento do Sublime descrito
acima e uma ativa percepção da presença do Mal no Universo, algo que a obra de
Lovecraft reitera sem parar. Poucos contos de Borges se destinam a reproduzir
essa sensação, e o mais notável é justamente seu assumido pastiche
lovecraftiano, “There Are More Things” (em O
Livro de Areia).
Borges
era um sujeito em paz com o Universo. Lovecraft não. Lovecraft tinha a sensação
(que é pessoal, intransferível, como toda visão estética) de que o Universo era
basicamente um lugar frio, indiferente, capaz de esmagar seres insignificantes
como nós. Para ele, existe um Mal atuante e poderoso em nosso Universo, mesmo que ele
desdenhe ou ignore nossa presença. Esse sentimento é estranho a Borges.
Lovecraft
experimentava aquela sensação que o crítico John Clute chama de “wrongness”, aquela sensação que Carlos
Drummond exprimia, em “Campo de Flores” (em Claro
Enigma, 1951):
(...) e cansado de
mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado,
um sistema de erros.
Lovecraft
era provavelmente um indivíduo com a mesma percepção do Sublime que a gente
encontra em Borges e em Drummond, mas por questões pessoais, emotivas,
biográficas, questões ligadas a sua formação como leitor, ele percebia o Cosmos
como algo fundamentalmente errado, tormentoso, indiferentemente mau. E é essa
combinação única de percepções que faz com que todo grande autor produza uma
obra única, pessoal e intransferível.