O palíndromo é aquela frase que pode ser lida do começo
para o fim e do fim para o começo e dá o mesmo resultado.
O palíndromo básico, talvez o mais famoso em nossa
língua, é: ROMA ME TEM AMOR. É tão famoso que é citado até em livros em inglês,
como o clássico I Love Me, vol. I, de
Michael Donner (Algonquin Books, 1996)
O meu palíndromo preferido em português sempre foi este,
que me lembra uma cena pitoresca do filme de Hitchcock, O Homem que Sabia Demais:
SOCORRAM-ME! SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS
É a cena no começo do filme, em que James
Stewart e sua família, viajando por Marrocos, começam a se enredar por acaso
numa trama de espionagem que vai colocar suas vidas em perigo:
Para quem, como eu, tem uma certa idéia fixa num assunto
tão desnecessário para a vida prática, aconselho também esse fininho e
riquíssimo volume, Palindromes and
Anagrams de Howard W. Bergerson (Dover, 1973):
Por alguma razão misteriosa, mas que me parece
auto-evidente, muitos autores de literatura fantástica têm uma certa fascinação
pelos palíndromos. Acho que a primeira pista disso me veio no conto de Julio
Cortázar “A distante” (em Bestiário,1951).
A narradora usa charadas e jogos de palavras variados para combater a insônia,
inclusive palíndromos:
Os fáceis, pula Lênin o atlas;
amigo não gema; os mais difíceis e formosos, ata-o, demoníaco Caim, ou me delata;
Anás usou teu auto, Susana.
(trad. Remy Gorga Filho)
O tradutor optou por verter diretamente as frases para o
português, e elas perderam o caráter palindrômico que têm em espanhol:
SALTA LENIN EL ATLAS
AMIGO NO GIMA
ATA-LE, DEMONIACO CAIN, O ME
DELATA
ANAS USO TU AUTO, SUSANA
Na mesma época em que Bestiário
era um modesto sucesso de vendas e de leituras no Brasil, Osman Lins publicou
seu monumental romance Avalovara
(Melhoramentos, 1973) um romance estruturado em cima de duas imagens
geométricas (uma espiral e um quadrado) sendo que neste último, dividido em
cinco linhas de cinco quadrados cada uma, está inscrita a frase latina SATOR
AREPO TENET OPERA ROTAS, que significa aproximadamente “o lavrador mentém com
cuidado o arado nos sulcos”. (Sem contar com as interpretações
místico-herméticas, que são muitas).
Cortázar e Osman são autores que nessa época dos anos
1970 estiveram associados ao tal realismo
mágico, um estilo ou gênero ou movimento de literatura fantástica
latino-americano. Os dois tinham preocupações estruturalistas e uma certa
tendência a ver os aspectos literários que envolvem jogo, enigma, decifração,
uma espécie de duelo brincalhão, mas profundo, entre o autor e o leitor.
Depois, no entanto, vim a reencontrar os palíndromos em
obras mais próximas da ficção científica do que do realismo mágico
latino-americano.
Tim Powers, em Expiration
Date (1995) postulou a existência de fantasmas de pessoas que ficam, após a
morte, meio de bobeira no mundo material. Eles têm uma inteligência rudimentar
e com seus filamentos ectoplásmicos conseguem mover coisas materiais
levezinhas: poeira, fios de cabelo, pedregulhos, pequenos pedaços de alguma
coisa.
Nesse mundo (Califórnia, contemporânea) existe um mercado
de espíritos, e a trama do romance, que é cheio de perseguições, fugas e
peripécias, é a busca do espírito de Thomas Edison que alguém recolheu num
vidro no momento de sua morte – pois a alma da pessoa deixa o corpo juntamente
com seu último suspiro.
Nesse mercado de fantasmas, uma das técnicas usadas para
atraí-los é escrever palíndromos e deixá-los bem à vista num lugar que se sabe
frequentado por eles. Com a inteligenciazinha que têm, eles veem aquela
mensagem escrita e têm curiosidade de saber o que é. Começam a ler e se deparam
com frases como:
SIT ON A POTATO PAN, OTIS (sente numa lata de batatas,
Otis)
GO HANG A SALAMI, I’M A LASAGNA HOG (pode pendurar seu
salame, eu gosto é de lasanha)
...e assim por diante. O que acontece? Quando chega ao
fim da frase os fantasmas (que eu suponho serem meio míopes, e que leem aquilo
com o nariz ectoplásmico quase encostado no papel) voltam no sentido inverso,
maravilhando-se com o fato de aquilo continuar a fazer sentido. Com isso, ficam
presos ali durante horas, indo e voltando, e quando os caça-fantasmas vêm
checar a armadilha é só sugar cada espectro para dentro de um vidrinho adrede
preparado.
Sim, admito que uma teoria como essa tem muito pouco de
ficção científica. Esqueci de avisar que Tim Powers pertence, mais do que à FC
(onde produziu livros notáveis como Os
Portais de Anúbis, 1983, e O Palácio
dos Pervertidos, 1985) a uma espécie de fantasia urbana contemporânea na
faixa de Neil Gaiman, Jonathan Carroll e Angela Carter.
Quem é ficção científica mesmo é Bruce Sterling, um dos
inventores do movimento cyberpunk. Em
2000 Sterling publicou um dos seus romances mais divertidos, Zeitgeist, onde ele recorre a um dos
seus personagens constantes, Leggy Starlitz (cujo nome se diz inspirado no de
Ziggy Stardust, de David Bowie).
Starlitz é o protótipo do sujeito descolado do século 21,
uma Deep Web ambulante de informações secretas, truques cibernéticos, manobras
marginais. Um talento à margem do sistema, combatendo o sistema e vivendo do
sistema.
Em Zeitgeist,
Starlitz vive de uma idéia genial: ele monta uma banda feminina de rock chamada
G-7, com sete pseudo-cantoras gostosinhas e que não cantam nada (é tudo
playback), representando os sete países que mandam no mundo. O mercado-alvo são
os países do Terceiro Mundo, cujas populações são incapazes de distinguir a boa
música pop da música pop que não vale nada.
A banda não vive em função dos shows: Starlitz quer ficar
rico vendendo os direitos relativos a bonecos, chaveiros, mochilas, bonés e
toda a parafernália comercial do mundo pop. É uma espécie de “último grande
golpe para se aposentar rico”.
A certa altura, Starlitz pega um avião e vai aos EUA,
levando a filha pequena, para se aconselhar com seu pai. O pai dele tem uma
história interessante. Por detalhes longos demais para explicar aqui, o velho
estava justamente no local onde foi explodida uma bomba atômica no deserto do
Novo México. A consequência disso é que ele foi projetado no continuum espaço-tempo mais ou menos
como alguém espalha com a mão uma mancha de tinta úmida. Ou seja: existem
resíduos de Vovô Joe ao longo de todo o restante do século.
Vovô Joe, que era um índio nativo americano, só pode ser
contactado via complicados rituais – e quando se comunica é através de
palíndromos. O Javanese Navajo (“Oh,
navajo javanês!”), exclama ele, que é índio navajo de origem. Mais adiante diz:
Ma is as selfless as I am (“Mamãe é
tão altruísta quanto eu sou”).
A comunicação Leggy/Vovô é meio indireta, e Leggy escuta
os palíndromos ditos pelo fantasma do velho e os explica (com bastante
liberdade imaginativa) à filha. Mais ou menos como os gregos deviam fazer com
as frases cabalísticas ditas pela pitonisa de Delfos ou pela sibila de Cumas.
O palíndromo serve a escritores assim como um objeto de crucial
e perigosa simetria, um objeto sagrado em que a alteração de uma só letra faria
desmoronar toda a estrutura. São objetos verbais perfeitos, e como tal podem
assumir (dramaturgicamente) poderes mágicos, hipnóticos, simbólicos, sobrenaturais.
Num universo sujeito à Segunda Lei da Termodinâmica, um
universo que marcha inexoravelmente numa só direção do Tempo, o palíndromo
parece nos dizer que é possível fugir a essa lei de ferro e marchar na direção
inversa – mesmo que seja somente para continuar dizendo as mesmas coisas.