Existe uma linha que me parece bem nítida ligando o romance policial “noir” ou “hardboiled” norte-americano e a literatura existencialista ou “do absurdo” francesa.
Esta última é mais difícil de delimitar, visto que não se
trata (como o outro) de um gênero popular, submisso a fórmulas (ou pelo menos
consciente da existência delas). Ela também
não se confunde, a não ser por uma certa contiguidade histórica e geográfica,
com o Teatro do Absurdo, rótulo que abriga nomes como Samuel Beckett, Eugene
Ionesco, Jean Genêt e outros, e foi objeto de um excelente livro de Martin
Esslin.
A literatura do absurdo inclui principalmente Albert
Camus e Jean-Paul Sartre, dois autores unidos por uma visão existencial
semelhante e separados por fortes divergências políticas.
Uma das características desse absurdo existencialista é a
presença constante do Acaso como fator determinante da tragédia humana. O homem
sempre acreditou no Destino, no “estava escrito”, no “maktub”, no fato
(consequente da visão religiosa do mundo) de que nossa existência é governada
por forças poderosas responsáveis pelo menor dos nossos atos, e que nos deixam,
de acordo com cada crença, maior ou menor amplitude de ação através do livre
arbítrio.
“Os desígnios de Deus são insondáveis” é a frase-padrão
com que esses crentes reagem diante de qualquer evento inexplicável, bizarro,
disparatado, aparentemente injusto e gratuito. A gente não sabe como é que um
coisa tão aberrante aconteceu. Deus quis. Só ele sabe o motivo, mas motivo há,
sentido existe. Nós é que não percebemos.
As filosofias do Absurdo substituíram essa perplexidade
por uma pior. Não existe nem Deus nem destino. A vida é gratuita, não aconteceu
em função de nenhum plano pré-desenhado por ninguém. O que se chamava Destino
não é mais que o Acaso, um entrechoque cego de ações coletivas e individuais.
Quando Sartre dizia que “a existência precede a essência”
dizia que a filmagem precede o roteiro. Pela crença milenar, havia um roteiro
traçado por Deus (a essência) e nós o estávamos cumprindo com nossa existência
(a filmagem). Sartre tomou um café, acendeu um cigarro e deu uma gargalhada. “Roteiro coisa nenhuma”,
disse ele. “A gente começa a existir, e passa a roteirizar a própria essência
com cada gesto, cada atitude, cada escolha, cada confronto, cada concessão. A
vida é um filme onde todo mundo está improvisando ao mesmo tempo.”
O romance policial hardboiled
é a história de crimes gratuitos, tragédias que teria sido tão fácil evitar,
paixões que não levam a nada, ambições que levam a seis cápsulas de chumbo num
beco escuro.
Em vez das grandes engrenagens históricas, sociais e
econômicas que impelem as tragédias dos personagens de Balzac, Tolstoi,
Stendhal e Dickens, o policial noir
mostra indivíduos pequenos, desamparados e arrogantes, violentos e sem
propósito, agitando-se como insetos, copulando como insetos, morrendo como
insetos atraídos por uma luz que os chama e os consome.
Essa insensatez da existência está nos livros de James M.
Cain (The Postman always rings twice,
Double Indemnity), de Horace McCoy (They shoot horses, don’t they?, No Pockets in a shroud), livros secos e
brutais que foram vivamente elogiados na França por Sartre, Camus, e outros
existencialistas.
Dashiell Hammett conta, em O Falcão Maltês (1929), um desses “casos” que encapsulam algum tipo
de lição, simbolismo, mensagem, ilustração, o que quiser.
O detetive Sam Spade conta a sua cliente o episódio que
ficou conhecido como “a Parábola de Flitcraft”. Flitcraft é um agente
imobiliário bem sucedido, pacato, estável, residente em Tacoma (Washington), que
um belo dia desaparece sem deixar rastros. Tinha dinheiro no banco, não tinha
inimigos, vivia em paz com a esposa e os dois filhos. Todas as investigações
para localizar Flitcraft dão com a cara no muro. Ele desapareceu (diz Sam
Spade) “como um punho desaparece quando alguém abre a mão”.
Cinco anos depois, a esposa de Flitcraft contrata o
detetive por ter ouvido falar que em Spokane, a poucas horas de distância, fora
visto um homem parecido com o marido dela. Spade vai até lá, e era Flicraft
mesmo. O desaparecido confirma tudo e diz que fugiu porque quis, e deixou bens
suficientes para que a família não passasse por problemas.
Spade pergunta por quê. E ele conta o que lhe aconteceu.
No dia de sua fuga, vinha andando pela rua e uma viga de metal caiu de uma
construção poucos metros à frente dele, arrebentando a calçada. Por segundos de
diferença ele teria sido esmagado. E nesse instante ele percebeu que sua vida
séria, profissional, ordeira e prática não fazia sentido. Podia morrer devido a
um acidente besta. E ele se sentiu (diz Sam Spade) “como se alguém tivesse
levantado a tampa da vida e lhe mostrado o mecanismo”.
Flitcraft fugiu, vagou pelo mundo, mudou de nome, voltou
pra uma cidade próxima, casou e recomeçou a vida, mas a parábola se concentra
nessa sensação terrível, de que por um instante fugaz a possibilidade da morte besta (o “ato gratuito” que tanto
os Surrealistas quanto os Existencialistas tanto exaltaram, com conotações
distintas) arrancou todo o sentido de sua vida.
Flitcraft é um herói absurdo, tanto quanto os heróis de
Camus: o Meursault de O Estrangeiro, que
mata um árabe a tiros na praia “por causa do calor” e é executado, o
juiz-penitente de A Queda que deixa
uma mulher se jogar na água do rio e a partir daí percebe que não era “a pessoa
do Bem” que fingia ser.
Ou o guerrilheiro espanhol em “O Muro” de Sartre, que,
pressionado a confessar onde estava escondido o líder do seu grupo (e ele nem
sabia onde era), diz um lugar qualquer, ao acaso. Os inimigos dão busca, e o
líder é encontrado e morto exatamente ali. Como não achar que o mundo é
absurdo, diante de um fato assim?
A morte banal é o gatilho que dispara o absurdo na
maioria dessas histórias, mesmo a morte evitada, como na Parábola de Flitcraft.
Assim como na Antiguidade uma pessoa qualquer era subitamente convencida da
existência de Deus devido a um fato fortuito, uma iluminação literalmente
“caída do céu”, o homem moderno tem uma iluminação às avessas, uma
anti-epifania. Uma experiência aleatória que faz desmoronar seu mundinho estável
e revela por trás dele um Caos sem dono.