Um dos melhores investimentos da minha adolescência foi a
coleção em fascículos Gênios da Pintura,
que eu rachava com minha irmã Clotilde.
Eram álbuns fininhos (cerca de 30 páginas, acho), mas com tamanho
grande, papel bom, e boa reprodução de quadros dos mestres. Os sebos estão
cheios deles hoje em dia.
Fiquei conhecendo melhor alguns artistas que eu já sabia
quem eram, como Leonardo da Vinci e Van Gogh; mas o melhor de coleções baratas,
acho, é que elas nos dão a chance de investir no desconhecido.
É como livro em sebo. Às vezes eu estou numa livraria
chique e vejo um livro de capa estranha, título esquisito, de autor
desconhecido. Folheio, leio algo que me chama a atenção... mas o livro custa 70
reais. Adeus, livro! Se está num sebo,
custa 10. Eu levo. Pago pra ver.
Paguei pra ver um fascículo de um tal de James Ensor que
durante alguns meses vertiginosos tornou-se meu pintor preferido (foi
destronado quando chegou o fascículo de Max Ernst). Ensor era um belga que
pintava monstros, máscaras, criaturas bizarras. Seus quadros prefiguram (para
mim) o teatro de Samuel Beckett, o cinema de David Lynch e os contos de Lília
Pereira da Silva. São situações enigmáticas, num clima indefinível e ameaçador,
vividas por criaturas grotescas que se comportam de modo absurdo. Tem coisa
melhor no mundo?!
Aliás, a Bélgica tem uma concepção do Fantástico muito
peculiar, embora fique, injustamente, meio à sombra do Fantástico francês. As
pinturas de Paul Delvaux, os filmes de seu filho André Delvaux, os contos de
Jean Ray (autor de “Malpertuis”), a ficção científica de J. H. Rosny Ainé,
todos compartilham um clima semelhante. Uma boa porta de entrada em português é
a maciça antologia Entre o real e o
surreal: antologia da literatura belga de língua francesa, ed. Marc
Quaghebeur, Zilá Bernd, Leonor Lourenço de Abreu e Robert Ponge (Porto Alegre:
Tomo Editorial, 2009).
O forte de Ensor (1860-1949) são seus quadros a óleo, mas
era um artista versátil. Anos atrás vi na FAAP (São Paulo) uma exposição
riquíssima com suas gravuras e águas-fortes, uma vertente completamente
diversa, mas também roçando vez por outra no Fantástico.
“Esqueletos disputando um enforcado” (1891). Faz meio
século que eu penso nesse quadro. Quem são, o quê são, essas criaturas,
esqueletos vivos trajados com roupas de mulheres velhas, brandindo vassouras e
guarda-chuvas, numa altercação violenta e trôpega, aprontando o maior barraco
numa sala de portas escancaradas enquanto a vizinhança, igualmente carnavalesca
e monstruosa, se deleita espreitando pela porta?
São talvez os mesmos que se reúnem em torno de um
fogareiro em “Esqueletos se aquecendo”, ossadas vestidas com roupas
extravagantes e cômicas que se reúnem em torno de um aquecedor. Um deles usa
cartola e empunha um violino, como um comediante de music-hall. Outro (uma
mulher?) tem um xale azul nos ombros e estende as mãos, para aquecê-las. Há
outro esqueleto caído no chão, tendo ao lado uma paleta de pintor; ou talvez
não seja um esqueleto completo, apenas a caveira, um capote comprido e as
botas, como se o frio lhe tivesse derretido os ossos.
Esqueletos e máscaras são dois dos temas preferidos dele.
As máscaras são sempre toscas, meio ameaçadoras, meio ridículas, como aqueles
figurantes de filmes de Fellini ou de Pasolini em cuja fisionomia só
acreditamos porque sabemos que não são atores caracterizados, são gente que é
assim mesmo, e foram pegados na rua para nos assombrar por alguns segundos e
sumir para sempre.
“O assombro da máscara Wouse” (1889) mostra uma mulher
rubicunda e porcina entrando num aposento onde se vê, mais uma vez, uma caveira
caída ao chão no meio de roupas vazias. “As máscaras escandalizadas” (1883)
mostra um quartinho de pensão barata bem dostoievskiana. Um homem vestido e
mascarado está sentado a uma mesinha, tendo uma garrafa à frente; a porta se
abre e entra uma velha mascarada, empunhando um porrete. Escrevi aos 18 anos um
continho surrealista em que batizei esses personagens de Tuunc e Géi-éi.
Seu painel mais famoso deve ser “A entrada de Cristo em
Bruxelas” (1889) onde ele mostra Cristo em seu burrinho cercado por uma
multidão de militares, autoridades, políticos, burgueses, fanfarras, bandeiras.
De onde vem isso?
Não sei. Talvez Umberto Eco, em
sua Histórioa da Feiura, tenha alguma
coisa a nos dizer. A pintura de Ensor satisfaz talvez “essa necessidade do
horroroso” que Augusto dos Anjos registrou tão bem; se este não fosse um
poderoso impulso do inconsciente coletivo não teríamos as animações de Jan
Svankmajer ou de Chris Cunningham, não teríamos o cinema de Luis Buñuel, não
teríamos os painéis de Hieronymus Bosch, não teríamos os contos de Kafka nem os
Edgar Poe, não teríamos o surrealismo francês ou o expressionismo alemão.
Ao contrário de muito do “horroroso contemporâneo”, no
entanto, a pintura de Ensor não vem carregada de violência nem de sadismo. Seu
horror tem algo de circo e de comédia; é um horror caquético e balbuciante, que
num momento nos dá pena, em outro nos dá repulsa, e mais adiante provoca uma
gargalhada. É uma paleta híbrida da experiência humana que me ajudou muito a
entender desde cedo a mente alheia, as emoções alheias, a mesquinhez alheia, a
ratonice alheia – e as minhas próprias. E, apesar dessa extensa lista de comparações
enumeradas mais acima, é uma experiência que até hoje só encontrei nas máscaras
e nos esqueletos de Ensor.
"Auto Retrato com Máscaras", 1899: