domingo, 22 de janeiro de 2017

4202) Os checkpoints da vida (22.1.2017)



(ilustração: Christian Pierce)

Uma das coisas boas de ler vários livros ao mesmo tempo é que às vezes a gente tem a sensação de estar lendo uma história só, que vai passando por diferentes narradores.

Pois bem: estava eu lendo uma noveleta de Ted Chiang, The Lifecycle of Software Objects (2010). É a história de um grupo de programadores envolvidos na criação de digientes, criaturinhas virtuais que se comportam como personagens de videogames, mas têm inteligência própria, dialogam com os programadores, evoluem por conta própria.

Os personagens de Chiang começam a criar esses digientes como se fossem animaizinhos de estimação, mas logo veem neles algo como crianças humanas, porque são (com certas limitações, pois são inteligências sem corpo biológico) capazes de pensar, sentir emoções, fazer planos para o futuro, ter curiosidade pelo mundo.

A certa altura do processo, aliás, os pesquisadores conseguem fazer o upload dos digientes para os corpos de pequenos robôs dotados de sensores táteis, o que permite aos digientes sair do computador e andar pelo nosso mundo físico, experimentando texturas, tendo a noção de um espaço tridimensional, etc.

Surge então um episódio em que dois digientes, Marco e Polo, pegam uma briga feia e ficam zangados um com o outro. E eles pedem a Derek, o seu programador, que os remeta de volta ao “ponto de recuperação” (checkpoint) anterior à briga, para que ela possa ser apagada de suas memórias.

O checkpoint é um recurso que temos no computador. Às vezes eu quero fazer no sistema uma mudança muito arriscada, que pode dar zebra. Tipo instalar um programa novo, muito complicado. Por precaução, faço o sistema “tirar uma foto” do seu estado completo nesse momento. Este será o checkpoint. Depois, instalo a novidade. Deu zebra? Peço para voltar ao ponto de recuperação, e – abracadabra!  Meu computador está igualzinho ao que era antes do problema.

Os digientes têm consciência disso, sabem que pode ser feito. E fazem seu pedido a Derek, quando este liga o computador e acessa a plataforma.

Os dois digientes desde então mal se falam, de modo que Derek sente um certo alívio quando eles vêm procurá-lo, juntos.
- É bom ver vocês dois juntos de novo. Fizeram as pazes?
- Não! – diz Polo. – Zangado ainda.
- Lamento ouvir isso.
- A gente quer ajuda – diz Marco.
- Muito bem. Em quê?
- Que leve a gente para semana passada, antes da briga.
- O quê?! – Essa é a primeira vez em que ele vê um digiente pedindo para ser levado de volta a um ponto de recuperação. – Por que querem isso?
- Não quero lembrar a briga grande – diz Marco.
- Quero ficar feliz, não quero zangado – diz Polo. – Você quer a gente feliz, certo?

Derek não sabe o que fazer. Ele acha que esta seria uma solução muito simplista, e que na verdade os digientes, se querem evoluir como criaturas pensantes e sentintes, precisam aprender a assimilar esses maus momentos, os desgostos, as brigas, as tristezas. Não é assim que os humanos fazem?

Eu estava nesse ponto (meu texto está no computador, não num livro impresso) quando interrompi a leitura para me deitar um pouco. Os digientes, que não têm corpos biológicos, não sabem que escritores ou programadores de software sexagenários precisam muitas vezes deitar numa cama de verdade para repousar a coluna-prestes.

Eu costumo alternar uma hora sentado no computador e meia hora deitado, lendo, e para isso tenho sempre junto do meu travesseiro dois ou três livros abertos na página certa, para que eu possa retomar a leitura de onde parei.

E nesse dia, mal terminei de ler o trecho acima, deitei e peguei meio ao acaso a Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), de Lima Barreto, e daí a pouco enveredei por este trecho, no capítulo 9, quando o narrador, de nome Augusto Machado, pega um trem para o subúrbio. Machado observa seus companheiros de viagem, escuta sua conversa e começa a achá-los meio ridículos (é um indivíduo solitário, hipercrítico, meio casmurro). E diz:

Deixei de observar os quatro curiosos personagens, virei o rosto e, pela portinhola, pus-me a ver a paisagem, os morros altos e azulados, o verde-claro das campinas, o verde-escuro das encostas, as fagulhas de luz, as hastilhas de alegria no ar, as palmeiras melancólicas... Um dia viria que tudo isso havia de fugir dos meus olhos... Por que não sou assim como aquele barrigudo senhor, inconscientemente animalesco, que não pensa nos fins, nas restrições e nas limitações? Longe de me confortar, a educação que recebi só me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez despeitos! Porque m'a deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura, sem amigos? Ah! se eu pudesse apagá-la do cérebro! Varreria uma por uma as noções, as teorias, as sentenças, as leis que me fizeram absorver; e ficaria sem a tentação danada da analogia, sem o veneno da análise.

O desejo do narrador de Lima Barreto é o mesmo desejo dos digientes de Ted Chiang: voltar a um ponto de recuperação anterior que preserve uma parte básica de sua mente e memória, mas elimine certas fontes de sofrimento.

Se isto nos fosse possível, muitas pessoas viveriam assim, sem dúvida, dando cinco passos à frente e quatro atrás, retroagindo cada vez que algum acontecimento as magoasse. E voltando, sem dúvida, a cometer de novo os mesmos erros, cair nas mesmas armadilhas, transformando-se num boneco amnésico capaz de pisar cem vezes na mesma casca de banana, como certos comediantes do cinema mudo.

Vejo essa continuidade de espírito entre o romance brasileiro de 1919 e o norte-americano de 2010, e o próprio Lima Barreto, se tivesse acesso a este último, talvez se visse um pouco nele, sem estranhar sua ousadia especulativa.

Pois, afinal, umas poucas linhas adiante o próprio “Augusto Machado” recorre à ficção científica para explicar a amizade que nutre por seu mestre Gonzaga de Sá, e a identificação espiritual entre os dois:

Arrependi-me da maldição e reconciliei-me comigo mesmo. Havia de curar-me. Gonzaga de Sá não me falava, mas eu sentia que a metade daqueles pensamentos eram dele. A nossa amizade era tão perfeita, que dispensava palavras. Entre nós havia aquele aperfeiçoamento de comunicação, que Wells tanto encomia nos marcianos: mal emitia um pensamento, um dos nossos cérebros, ia ele logo ao outro, sem intermediário algum, por via telepática.

Lima Barreto se refere, é claro, aos marcianos de The War of the Worlds (1898), de H. G. Wells.