Os textos curtíssimos de ficção, dos quais falo aqui de vez em quando, estão para a prosa narrativa mais ou menos como o cartum está para a história em quadrinhos (HQ).
O cartum é algo que a gente olha, lê em alguns segundos,
e recebe o impacto – pá!... – de uma
idéia, que em geral vem sintetizada em uma imagem e uma ou duas frases (às
vezes só a imagem mesmo).
Dizem os teóricos e praticantes da ficção curtíssima que
ela serve como equivalente verbal disto.
Seriam as famosas “histórias em 6 palavras”: o exemplo
famoso é atribuído a Hemingway: “Vende-se.
Sapatinhos de bebê. Nunca usados.”
Ou as “histórias em duas frases”. Gosto desta, que achei em
inglês por aí, assinada com nickname: “Dia
312. A Internet ainda não está funcionando.” – fluffyponyza.
Ou as “histórias com 100 caracteres”: “Quando Gustavo C. acordou de sonhos
intranquilos, estava metamorfoseado num livro escrito em húngaro.”, de Gustavo
Melo Czekster.
Em inglês usa-se muito o Drabble, que são historietas de exatamente 100 palavras (não
contando o título). Exemplos aqui:
Tudo isto, para mim, equivale a um cartum. Pá! – e o efeito acontece. Acho que a
principal crítica que pode ser feita a isto, em termos de ficção em prosa, é
que a ficção geralmente busca produzir uma impressão de passagem de tempo, de
mudança, de transformação psicológica. E essas ficções curtíssimas proporcionam
apenas a mais rápida e superficial das mudanças, que é a surpresa.
Em tese, qualquer história, com o mínimo de duas palavras,
pode indicar permanência + mudança, identidade + alteridade, espaço + tempo.
Mesmo a mais curta. “Eu morri” – está
tudo aí.
Tem gente que pergunta: “Mas então o romance vai deixar
de existir?! Vamos ser proibidos de escrever livros de 200 ou 300
páginas?!” Não, colega. Ninguém vai
proibir nem aposentar coisa nenhuma. Cada um faz o que lhe der na telha,
conforme a altura de sua escada. Fazer microficções desse tipo é apenas um
exercício que agrada a alguns porque parece aquelas esculturas de santos feitas
num palito de fósforo, ou os caras que conseguem escrever o Pai Nosso numa
cabeça de alfinete.
Quando comcei a escrever no “Jornal da Paraíba” em 2003,
minha coluna tinha tamanho fixo entre 2.900 e 3.000 caracteres. Amigos
perguntavam por que eu não publicava um conto de vez em quando, e eu dizia que
era impossível escrever um conto que prestasse num tamanho tão pequeno. E o
fato é que, olhando meus registros, vejo que só comecei a tentar fazer isso depois
de mais de 800 colunas publicadas.
Depois, em 2011, o limite de espaço no jornal caiu para
2600 / 2800 caracteres com espaços. A esta altura eu já tinha “pegado o
cacoete” e estava produzindo pequenos contos curtos que, sem serem textos
extraordinários, eram compactos, precisos, tinham começo-meio-fim, e me
deixavam satisfeito, porque sempre fui de escrever muito. Se eu me pegasse com
dois ou três personagens conversando numa mesa, então, não tinha papel que
chegasse.
Vários desses contos estão em Histórias Para Lembrar Dormindo (Casa da Palavra, 2013). Algum
desses meus contos é uma obra prima? Não, e nenhum deles precisa ser. São
exercícios. Obra-prima é algo que acontece como resultado do nosso trabalho,
mas independente de nossa intenção. Resulta de uma mistura misteriosa entre Inevitabilidade
e Acaso.
Sentar no computador com a intenção de produzir uma
obra-prima é como ir para a cama com a esposa com a intenção de produzir um
filho bonito. Não é assim que essas coisas acontecem.
A “flash fiction”, como se chama por aí, é uma boa escola
para quem pertence ao time dos fluentes, dos caudalosos, dos escrevedores velozes
e compulsivos.
É neste sentido que oficinas literárias podem ser muito
úteis inclusive para quem já escreve bem, para quem já publicou, ganhou
prêmios, o escambau. Escritores assim alcançam uma certa medida de sucesso
pelas qualidades que de fato existem nas suas obras, mas têm defeitos (esse de
escrever demais, no presente caso) que a médio prazo começam a cansar o leitor.
Já vi oficinas de roteiro de cinema em que se cobrava dos
alunos: conte sua história em uma frase, depois em um parágrafo de cinco
linhas, depois em uma lauda, depois em dez laudas. Claro que uma tarefa assim
nunca é feita em sequência. O cara vai botando a história no papel e vai
percebendo os detalhes que pertencem a cada um desses estágios.
Praticando essa forma, o escritor, se chegar a dominá-la
em certa medida, percebe a força dos efeitos narrativos na prosa muito curta,
onde cada palavra pesa, onde se diz “o casarão” sem poder descrever o telhado,
as cornijas, as janelas, as balaustradas, o pórtico, o muro coberto de hera...
A grande maioria desses textos curtos não tem muita
narrativa, no sentido de contar uma historinha completa com começo, meio e fim:
tem mais de reflexão abstrata ou de descrição concreta de uma cenazinha do
cotidiano.
Não importa, a não ser que o autor queira se tornar um
mestre nesse estilo. Para quem o utiliza como um meio, apenas, pode ajudar
muito. Raymond Chandler escrevia seus romances usando folhas de papel cortadas
ao meio. Cada fragmento de cena específico tinha de caber ali. Cada meia-folha
daquelas era reescrita várias vezes. A existência de um limite nos obriga a
valorizar tudo que poderá caber lá dentro. A extensão é uma “contrainte”, uma
restrição voluntariamente auto-aplicada e fielmente seguida.