Belchior teve a coragem de
dar-um-perdido, sair de fininho no meio da festa, largar o palco e deixar o
microfone falando sozinho. Ninguém é obrigado a passar a vida toda rodando
dentro do moedor-de-carne do show business. Tem gente que gosta e se dá bem.
Tem gente que suporta sem grandes prejuízos. Tem gente que se submete porque
não tem opção. E tem gente que pensa: “Eu não sou obrigado a ficar fazendo isso
a vida toda.”
O primeiro disco dele,
hoje pouco conhecido, era cheio de experiências meio concretistas, típicas de
quem ainda bambeia entre o livro e o palco. Alucinação (1976) foi o seu primeiro disco a atingir o público, com um
impacto que nunca se dissipou.
Os jovens de hoje que o
escutam pela primeira vez sentem o mesmo “peso” que a minha geração sentiu há
quarenta anos, porque o disco, embora seja um disco tão característico daquela
época, vale para qualquer uma, pois fala de sentimentos cíclicos, de situações
humanas recorrentes.
E acima de tudo é um disco
que bate no ouvinte, mais do que pelos seus temas imediatos, pela surpresa
daquela voz improvável (hoje mais ainda!), daqueles versos que vão fundo,
daquela verdade pessoal que abre o coração na mesa e com isto ganha o coração
coletivo.
Belchior evocava João
Cabral (“A Palo Seco”), alfinetava os baianos, trançava numa mesma referência
Edgar Allan Poe, Humberto Teixeira e Roman Jakobsson (“raven / never”), os
Beatles e Zé Limeira. Era a paleta de referências de uma época em que muitas
hierarquias se nivelaram e muitos cânones desceram da torre de marfim para a
calçada. Um momento raro em que o Mercado, o único deus onipresente, soube ganhar dinheiro com isso.
Hoje, é praticamente zero
a possibilidade de grande sucesso de um tipo de música como a que ele, com
menos de 30 anos, fez tocar nas rádios de todo o Brasil. O mercado musical do
Brasil encolheu. Ficou menor do que Belchior.
A notícia da morte do
poeta me pegou no meio da leitura de Para
Belchior com amor (Fortaleza: Miragem Editorial/Expressão Gráfica, 2017),
coletânea organizada por Ricardo Kelmer, meu parceiro constante de mesas redondas
e de cervejas de formatos variados no Encontro da Nova Consciência, em Campina
Grande.
Kelmer reuniu contos,
crônicas e pequenos ensaios assinados por Xico Sá, Gero Camilo, Ethel de Paula,
Raymundo Netto, Carmélia Aragão, Ricardo Guilherme, Joan Edesson de Oliveira,
José Américo Bezerra Saraiva, Ana Karla Dubiela, Cleudene Aragão, Ricardo
Kelmer, Roberto Maciel, Thiago Arrais e Jeff Peixoto – catorze cearenses que
revisitam suas canções preferidas na obra do bardo de Sobral, lembram
episódios, mostram gratidão pelos versos que marcaram suas vidas.
O século 20 foi o Século
da Canção Popular. Nunca essa forma de arte teve tanto poder quanto nos últimos cem anos. Nenhuma outra expressão artística atingiu, nesse período, tanta
gente, e de forma tão variada, e com influências tão duradouras. Primeiro, através da indústria fonográfica,
depois através do rádio e da TV, depois pela indústria gigantesca dos grandes
shows ao vivo, e finalmente pela Internet. Tornou-se uma experiência artística
das massas (e frequentemente com alto nível estético), massas com as quais a
ópera e a música erudita jamais sonharam.
Em muitos momentos desse
processo, na Europa, nas Américas, no Brasil, sucesso popular e novidade
estética decolaram juntas para brilhar à vista de todos. A geração de Belchior
foi uma das que conseguiram essa façanha em nosso país. Façanha difícil de se
repetir na indústria musical de hoje, com sua aposta pesada na fórmula banal e
no clichê. Não importa. O que entrou na memória coletiva não sai mais. Os
diamantes são eternos.