quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

4192) Spielberg 70 anos (22.12.2016)




Dias atrás o diretor Steven Spielberg completou 70 anos, e recebeu homenagens nas redes sociais. Fiquei pensando se valeria a pena escrever alguma coisa a respeito, não apenas porque todo mundo está falando, mas porque ele é um dos cineastas que eu mais presto atenção.

Não direi que é um dos meus 10 preferidos, nem dos meus 20, até porque não costumo classificar coisas dessa maneira. Mas simpatizo com a persona pública dele, com o modo como ele filma, com muitas idéias que ele expõe nas suas entrevistas...

Enfim, me veio a idéia de fazer pequenas comparações entre ele e outros diretores, para deixar mais claro, por efeito de contraste, as razões por que gosto de algumas coisas dele e não gosto de outras.

Spielberg x Kubrick

Nunca deixei de comparar os dois diretores desde que Spielberg herdou de Kubrick, após a morte deste, a realização do projeto I. A. -- Inteligência Artificial (2001), aquela fábula de Pinóquio futurista, o menino robô que sonha em virar menino de verdade. Os dois são cineastas que exploraram a FC mas se dão bem em qualquer gênero.

Para mim quem colocou de maneira mais precisa a diferença entre eles foi Terry Gilliam nesta entrevista: http://www.openculture.com/2011/11/terry_gilliam_on_filmmakers.html. O que estraga o cinema de Spielberg, diz ele, é a obrigatoriedade do final feliz, da resposta reconfortante, ingrediente hollywoodiano obrigatório.  Filme de Hollywood é como uma refeição que precisa terminar com doce. Mesmo quando aborda assuntos amargos, Spielberg cede a esse dogma dramatúrgico.

Diz Gilliam: “Há uma frase bem esclarecedora de Kubrick sobre A Lista de Schindler. Ele diz que é um filme sobre o sucesso: ‘vejam que cara fodão, ele salvou uma porção de gente’. Mas o Holocausto é uma história de fracasso, do fracasso da Humanidade em impedir o assassinato de seis milhões de pessoas”. 

Eu completaria o comentário de Gilliam dizendo que o uso da música revela muito bem o espírito de cada um dos dois. Kubrick já fez milhões de espectadores darem um pulo de susto na poltrona meramente por causa da música: a valsa das espaçonaves em 2001, a canção nostálgica que sublinha o holocausto atômico em Dr. Fantástico, a impressionante e assustadora trilha de De Olhos Fechados, a ironia de justapor tortura e Beethoven em Laranja Mecânica...

Já Spielberg nunca deixa de usar o amaldiçoado indutor-emocional feito de violinos plangentes e teclados exuberantes para sugerir amor, ternura, nostalgia... Falta pouco para Spielberg filmar Kafka e botar Richard Clayderman na trilha sonora.


Spielberg x Lucas

É quase inevitável citar os dois juntos, porque são amigos, parceiros, começaram juntos, e os dois se destacam na sua geração pelo fato de serem dois cinéfilos, dois caras que não gostam de bebida, nem de drogas, nem de farra (eu quase diria que não gostam de sexo): gostam de cinema e nada mais. (Leiam os capítulos sobre esses dois monges perdidos num carnaval de cocaína e surubas, em Como a Geração Sexo, Drogas & Rock-and-Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, Ed. Intrínseca).

Os dois estão para o filme de aventuras juvenis assim como Francis F. Coppola e Martin Scorsese estão para o filme policial de sua época. Enquanto Lucas realizava a primeira trilogia de Star Wars (em 1977, 1980 e 1983), Spielberg produziu sua trilogia de Indiana Jones (em 1981, 1984 e 1989) No espaço de uma década, uma geração inteira de adolescentes sofreu um brutal upgrade em seu conceito de filme de aventura.

Comparando os dois: Spielberg é um diretor de cinema completo, com qualidades e defeitos que são a cara do cinema do seu país e do seu tempo. Lucas não é bom diretor, mesmo tendo iniciado a carreira com dois filmes fortemente autorais e satisfatórios (a distopia FC THX-1138 e o rito de passagem adolescente de Loucuras de verão).

Lucas é um produtor e idealizador em grande escala, mas como diretor involuiu ao longo dos anos. A trilogia do meio de Star Wars é constrangedora. Spielberg tem algumas escorregadas brabas, mas volta e meia vem com um filme que merece respeito, como Minority Report.



Spielberg x Hitchcock

Meus filmes preferidos de Spielberg são Encurralado, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Caçadores da Arca Perdida, O Império do Sol e Minority Report. (Com a ressalva de que não vi vários filmes importantes dele – ainda preciso ver o Soldado Ryan e aquele dos agentes do Mossad executando os terroristas de Munique.)

Alguém definiu Spielberg como “um animal cinematográfico”, e eu interpreto isso no sentido de que ele pensa instintivamente em forma de imagens em movimento, é algo que está nos seus processos mentais básicos. Outros cineastas têm uma idéia e depois pensam em como transpor essa idéia para imagens: Spielberg já pensa em forma de imagem. É como certo tipo de jogador de futebol, como Romário e Messi – quando a bola chega no pé, ele já sabe tudo que vai fazer.

Hitchcock é a mesma coisa, elevada a um grau que chega ao preciosismo. Muita gente criticava Hitchcock por sacrificar tudo ao efeito de linguagem.  Ele sacrificava a verossimilhança da história, a psicologia dos personagens, a verdade factual, tudo pelo prazer de criar uma cena bem feita. Eu acho que ele não conseguiria filmar de outro modo. Ao escolher uma história, era a forma cinematográfica que aquela história ia assumir que lhe interessava. Spielberg também.

Houve um aprendizado, claro. O livro de Peter Biskind que citei aí em cima fala do terror de Spielberg durante a filmagem de Tubarão ao perceber que seus diálogos em campo e contracampo, filmados no próprio mar, davam saltos incômodos na tela porque a cada plano o céu estava com uma luminosidade diferente.

Mas mesmo nos seus filmes mais fracos a gente percebe como ele dominou rapidamente essa percepção instintiva da melhor maneira de posicionar e mover a câmera e os atores, mudar o enquadramento, destacar o som, fazer o corte, encaixar o momento do diálogo... 

É o cinema ideal?  Não, mas é uma depuração perfeita do cinema-de-efeitos norte-americano, que teve entre seus criadores, é claro, o inglês Hitchcock, o irlandês John Ford, o austríaco Billy Wilder, o alemão Ernst Lubitsch etc.