Dias atrás o diretor Steven Spielberg completou 70 anos, e recebeu homenagens nas redes sociais. Fiquei pensando se valeria a pena escrever alguma coisa a respeito, não apenas porque todo mundo está falando, mas porque ele é um dos cineastas que eu mais presto atenção.
Não direi que é um dos meus 10 preferidos, nem dos meus 20,
até porque não costumo classificar coisas dessa maneira. Mas simpatizo com a
persona pública dele, com o modo como ele filma, com muitas idéias que ele
expõe nas suas entrevistas...
Enfim, me veio a idéia de fazer pequenas comparações
entre ele e outros diretores, para deixar mais claro, por efeito de contraste, as
razões por que gosto de algumas coisas dele e não gosto de outras.
Spielberg x
Kubrick
Nunca deixei de comparar os dois diretores desde que
Spielberg herdou de Kubrick, após a morte deste, a realização do projeto I. A. -- Inteligência Artificial (2001),
aquela fábula de Pinóquio futurista, o menino robô que sonha em virar menino de
verdade. Os dois são cineastas que exploraram a FC mas se dão bem em qualquer
gênero.
Para mim quem colocou de maneira mais precisa a diferença
entre eles foi Terry Gilliam nesta entrevista: http://www.openculture.com/2011/11/terry_gilliam_on_filmmakers.html.
O que estraga o cinema de Spielberg, diz ele, é a obrigatoriedade do final
feliz, da resposta reconfortante, ingrediente hollywoodiano obrigatório. Filme de Hollywood é como uma refeição que
precisa terminar com doce. Mesmo quando aborda assuntos amargos, Spielberg cede
a esse dogma dramatúrgico.
Diz Gilliam: “Há uma frase bem esclarecedora de Kubrick
sobre A Lista de Schindler. Ele diz
que é um filme sobre o sucesso: ‘vejam que cara fodão, ele salvou uma porção de
gente’. Mas o Holocausto é uma história de fracasso, do fracasso da Humanidade
em impedir o assassinato de seis milhões de pessoas”.
Eu completaria o comentário de Gilliam dizendo que o uso
da música revela muito bem o espírito de cada um dos dois. Kubrick já fez
milhões de espectadores darem um pulo de susto na poltrona meramente por causa
da música: a valsa das espaçonaves em 2001,
a canção nostálgica que sublinha o holocausto atômico em Dr. Fantástico, a impressionante e assustadora trilha de De Olhos Fechados, a ironia de justapor
tortura e Beethoven em Laranja Mecânica...
Já Spielberg nunca deixa de usar o amaldiçoado
indutor-emocional feito de violinos plangentes e teclados exuberantes para
sugerir amor, ternura, nostalgia... Falta pouco para Spielberg filmar Kafka e
botar Richard Clayderman na trilha sonora.
Spielberg x Lucas
É quase inevitável citar os dois juntos, porque são
amigos, parceiros, começaram juntos, e os dois se destacam na sua geração pelo
fato de serem dois cinéfilos, dois caras que não gostam de bebida, nem de
drogas, nem de farra (eu quase diria que não gostam de sexo): gostam de cinema
e nada mais. (Leiam os capítulos sobre esses dois monges perdidos num carnaval
de cocaína e surubas, em Como a Geração
Sexo, Drogas & Rock-and-Roll Salvou Hollywood, de Peter Biskind, Ed.
Intrínseca).
Os dois estão para o filme de aventuras juvenis assim
como Francis F. Coppola e Martin Scorsese estão para o filme policial de sua
época. Enquanto Lucas realizava a primeira trilogia de Star Wars (em 1977, 1980 e 1983), Spielberg produziu sua trilogia
de Indiana Jones (em 1981, 1984 e 1989) No espaço de uma década, uma geração
inteira de adolescentes sofreu um brutal upgrade em seu conceito de filme de
aventura.
Comparando os dois: Spielberg é um diretor de cinema
completo, com qualidades e defeitos que são a cara do cinema do seu país e do
seu tempo. Lucas não é bom diretor, mesmo tendo iniciado a carreira com dois
filmes fortemente autorais e satisfatórios (a distopia FC THX-1138 e o rito de passagem adolescente de Loucuras de verão).
Lucas é um produtor e idealizador em grande escala, mas
como diretor involuiu ao longo dos anos. A trilogia do meio de Star Wars é
constrangedora. Spielberg tem algumas escorregadas brabas, mas volta e meia vem
com um filme que merece respeito, como Minority
Report.
Spielberg x
Hitchcock
Meus filmes preferidos de Spielberg são Encurralado, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, E.T., Caçadores da Arca
Perdida, O Império do Sol e Minority Report. (Com a ressalva de que
não vi vários filmes importantes dele – ainda preciso ver o Soldado Ryan e aquele dos agentes do
Mossad executando os terroristas de Munique.)
Alguém definiu Spielberg como “um animal cinematográfico”,
e eu interpreto isso no sentido de que ele pensa instintivamente em forma de
imagens em movimento, é algo que está nos seus processos mentais básicos.
Outros cineastas têm uma idéia e depois pensam em como transpor essa idéia para
imagens: Spielberg já pensa em forma de imagem. É como certo tipo de jogador de
futebol, como Romário e Messi – quando a bola chega no pé, ele já sabe tudo que
vai fazer.
Hitchcock é a mesma coisa, elevada a um grau que chega ao
preciosismo. Muita gente criticava Hitchcock por sacrificar tudo ao efeito de
linguagem. Ele sacrificava a
verossimilhança da história, a psicologia dos personagens, a verdade factual,
tudo pelo prazer de criar uma cena bem feita. Eu acho que ele não conseguiria
filmar de outro modo. Ao escolher uma história, era a forma cinematográfica que
aquela história ia assumir que lhe interessava. Spielberg também.
Houve um aprendizado, claro. O livro de Peter Biskind que
citei aí em cima fala do terror de Spielberg durante a filmagem de Tubarão ao perceber que seus diálogos em
campo e contracampo, filmados no próprio mar, davam saltos incômodos na tela
porque a cada plano o céu estava com uma luminosidade diferente.
Mas mesmo nos seus filmes mais fracos a gente percebe
como ele dominou rapidamente essa percepção instintiva da melhor maneira de
posicionar e mover a câmera e os atores, mudar o enquadramento, destacar o som,
fazer o corte, encaixar o momento do diálogo...
É o cinema ideal?
Não, mas é uma depuração perfeita do cinema-de-efeitos norte-americano, que
teve entre seus criadores, é claro, o inglês Hitchcock, o irlandês John Ford, o
austríaco Billy Wilder, o alemão Ernst Lubitsch etc.