(ilustração: Neurocomic)
Os
norte-americanos são imprescindíveis ao mundo pela sua capacidade de encontrar
formas simples para dizer verdades elementares. Os teóricos da complexidade
podem dizer o que quiserem sobre os fenômenos psicológicos que ocorrem na mente
durante a leitura de um texto de ficção, ou a visão de um filme, mas eles matam
a charada numa formulazinha deste tamanho.
A mecânica
básica disso, para o pessoal dos EUA, é: “Faça com que o leitor (o espectador)
se preocupe com o personagem, se importe com seu destino, se envolva com o que
lhe acontece”. É mais ou menos esse o sentido da expressão “to care about the
character”. É essa “com + paixão” que a arte quer, esse compartilhamento de
paixão com um mero agregado de letras.
O que é uma
grande injustiça com o conceito de personagens, o conceito de história de
ficção, porque eles não são meros agregados de letras. Os textos, como dizia
Damon Knight, são conjuntos de sinais onde deciframos as instruções. As
palavras impressas no livro são instruções. A história é o que acontece em nosssa mente durante a leitura delas.
Quem quiser
estudar a arte da narrativa (livro, cinema, teatro, HQ, etc.) tem que prestar
atenção ao modo como os norte-americanos a praticam. Não é o único modelo, mas
é um modelo importante, e é o modelo prevalente em nossa cultura, queiramos ou
não.
O modelo de
narrativa que os ianques cultivam teve força bastante para botar de pé
Hollywood inteira, indústria de quadrinhos e games, vários mercados editoriais,
o escambau. A arte popular norte-americana foi e é capaz de criar inumeráveis
modelos, reflexos, cenários hipotéticos das relações humanas. Vemos uma porção
de manchas pretas sobre superfície branca e aquilo nos evoca memórias que até
então talvez nem existissem.
O que faz a
gente se importar com um personagem? Talvez esse tipo de empatia precise ser
cultivado desde muito cedo, ou seja, o livro ou o filme devem se tornar desde
cedo uma parte importante do crescimento imaginativo, fabulatório, do jovem
futuro consumidor. Algumas pessoas têm mais empatia do que outras, se envolvem
mais, é como se acreditassem de fato que aquelas pessoas existem. São os
espectadores que choram nos filmes, etc. A reprodução das imagens foi capaz de,
com sua concretude, fazê-los suspender temporariamente não só a descrença, mas
a distância.
Podemos dizer
que para bem apreciar por dentro, intimamente, o Fantástico, é preciso ter uma
suspensão voluntária da descrença; e para apreciar nessa mesma medida o
Realismo é necessária uma suspensão voluntária da distância.
É preciso
acreditar no personagem. Quanto mais acreditamos, mais essa hipotética “glândula
da empatia” nos deixa aparelhados para fabular o outro. Para dialogarmos com o
outro – para convivermos na vida real. Mais preparados para imaginar situações
vividas pelo outro, para nos colocarmos no lugar do outro. Nem todo mundo é
capaz disso. Vemos por aí, o tempo inteiro, pessoas que só pensam no seu
próprio umbigo, que não arredam pé do seu centro nem por um segundo, talvez por
acharem que fazendo assim desaparecerão como bolha de sabão.
Preocupar-se
com um personagem é preocupar-se, em última análise, com alguém que não tem
como nos devolver esse favor; é de certa forma o mais altruísta dos sofrimentos.
Em seu livro Sherlock Holmes Was Wrong (2008) o autor
e psicanalista Pierre Bayard analisa o movimento generalizado de tristeza e
revolta dos leitores das aventuras do detetive quando Conan Doyle contou sua
morte em “O Problema Final” (1893). Diz ele:
O que acontece neste caso o faz parecer como se os leitores
tivessem estabelecido residência no mundo da ficção e não pudessem ser
arrancados de lá senão com um sofrimento insuportável. (...) Existe entre o
mundo da ficção e o mundo “real” um mundo
intermediário que é único para cada pessoa. (...) O desaparecimento [de
Holmes] não apenas privou esses leitores do prazer da leitura. Ele constituiu
uma intrusão violenta no seu mundo intermediário, num espaço íntimo onde eles
habitam e que faz parte deles. Assim, o que esses leitores experimentam é um
sofrimento psíquico autêntico, tornado ainda maior por ser compartilhado com
outros leitores.
Um personagem
de filme está ali, como no alto de uma tela de drive-in, inexistente mas gigantesco, imaterial mas
resplandescente, sem cordas vocais mas tonitruante. É a tela, é a bola de cristal
retangular e luminosa onde se lê o passado, o presente e o futuro das classes
médias do mundo inteiro. São os fantasmas de Hollywood, do Monte Olimpo eletrônico-digital,
o panteão de heróis, semideuses e titãs, só que agora produzidos em escala
industrial por equipes de roteiristas assalariados.
Nas oficinas
literárias, nos cursos de escrita criativa, nas guidelines fornecidas pelas revistas de FC aos candidatos a autor, nos manuais, nos guias, nos passo-a-passos
de auto-ajuda profissional, esse mantra sempre retorna: “Faça o leitor se
preocupar com o que acontece com seus personagens”. E funciona. Mesmo eu, que
imagino ler mais por prazeres estilísticos ou para comparações teóricas, de vez
em quando sou agarrado por um conto, uma série de TV, um quadrinho, um curta no
YouTube, um romance antiquado – simplesmente porque acreditei nos personagens e
agora vou ter que ver até o fim, porque estou angustiado ou curioso, e não quero
ir embora sem saber se A conseguiu tirar o marido da cadeia, se B deu um jeito
de escapar daquele acidente, se C estava mesmo dizendo a verdade a D, se E vai
descobrir o criminoso...
Em alguns
casos existe um envolvimento simbólico. Digamos que eu sou nordestino, então o personagem
nordestino X ou Y “me representaria”. Mas nem é isso. É antes o poder da
narração em si, do momento vivido pelo leitor. Esse momento é mais poderoso até
do que conceitos de classe, de simbolismo social, etc., a não ser naquelas
pessoas que fazem disso uma prioridade absoluta.
Numa pessoa
comum, é aquilo que Hitchcock sabia usar como ninguém, e que nos fazia torcer
pelo vilão no momento de maior suspense. É aquilo a que Raymond Chandler se
referia ao dizer que a visão da imaginação emotiva é curta mas é intensa. Essa
intensidade faz com que o parágrafo que estamos lendo seja mais real do que o
resto do livro. Se ele nos arrebata, não adianta a Voz da Razão ficar lá atrás
dizendo: “Isso é mentira, viu? Não aconteceu não...”
A narrativa é
sempre uma experiência vicária, é algo que estamos conhecendo apenas com a
mente, que depende de nossa imaginação visual, de nossa capacidade de engendrar
ambientes e situações.
Imaginação,
memória e emoção são vasos comunicantes. Se somos capazes de sentir uma breve
emoção humana por um personagem, isso quer dizer que não somos totalmente
insensíveis. Já ouvi pessoas dizendo que se emocionavam com livros porque no
livro ele tinha certeza que o personagem estava dizendo a verdade, e isso na
vida real é geralmente impossível, em se tratando de sentimentos íntimos,
inacessíveis, pessoais. Fantasiar emoções por meio dos personagens, numa
história que nos explica com clareza os fatos, nos ajuda a projetar sentido na
vida real, que nada nos explica. Nem explicará.