Minha relação com o cordel é primeiro que tudo uma relação
de leitor e de poeta. O interesse de estudar a fundo, de pesquisar a história,
de saber quem eram os poetas, como era o mercado editorial onde o cordel surgiu
– tudo isto veio muito depois.
Os folhetos de cordel eram cantados por minha mãe, quando
éramos pequenos. Meu pai, que escrevia sonetos e versos em geral, me ensinou
ainda muito cedo as regras de métrica, rima, estrofe, aplicáveis a todos os
gêneros. Nada disso era “estudo”. Recitar versos, lá em casa, era algo como
contar anedotas, ou contar histórias na hora de dormir. Fazia parte das
relações do dia a dia.
Um pesquisador acadêmico se surpreende às vezes com o
modo como poetas populares que não sabem ler nem escrever (um número cada vez
menor, porque a cada geração aumenta o grau de escolaridade dos poetas)
metrificam impecavelmente, “sem nem saber explicar o que é uma sílaba”.
Quem precisa saber o que é uma sílaba, para ser poeta?
Quem precisa saber o nome de uma nota musical, para cantá-la?
É um erro comum entre as pessoas que não têm o hábito de
falar poesia em voz alta, e de ouvir poesia. Ninguém precisa saber contar
sílabas em poesia. O poeta obedece a uma cadência,
e o ouvinte o acompanha. Contar sílabas vem depois (eu faço isso o tempo todo,
porque me dá prazer).
O cordel é primeiro que tudo uma literatura oral, uma das
“literaturas da voz” cuja importância vem sendo recuperada nas últimas décadas
por pesquisadores como Paul Zumthor, sem falar em pesquisas antigas e cruciais
como as de Alfred B. Lord e outros, que investigaram os métodos e o material
dos rapsodos da Europa Oriental. O cordel é feito para ser recitado em voz
alta, em grupo, não para ser lido a sós e em silêncio.
Comparo um folheto de cordel a um livro com uma peça
teatral, um livro comprado na livraria: Macbeth
de Shakespeare ou o Auto da Compadecida
de Ariano Suassuna. É um livro? É, mas não foi feito para ser lido como um
livro comum de versos ou como um romance. Foi feito para ser dito em voz alta
diante de pessoas atentas que escutam.
O texto que aparece impresso é apenas um meio, uma mídia,
uma tática para preservar e passar adiante algo que só existe de verdade quando
é produzido pelas cordas vocais de A e atinge os tímpanos dos ouvidos de B.
É preciso lembrar que uma coisa é o texto literário, e
outra coisa é o suporte físico através do qual acessamos esse texto.
Chamamos de “literatura de cordel” todo esse corpo
literário publicado nos folhetinhos de feira, de papel-jornal, 11 centímetros
por 16, em formatos básicos de 8, 16 ou 32 páginas, com xilogravura na capa.
Mas eu posso publicar, num folheto assim, até mesmo uma
obra em prosa: um conto de Hemingway. Ou um trecho de um romance de Marcel
Proust. Ou um discurso de Juscelino Kubitschek. Ou um editorial do saudoso
“Diário da Borborema”. Ou uma propaganda de Biotônico Fontoura. Tudo isso cabe num folheto. Isso é literatura
de cordel?
“Literatura de cordel” é uma descrição editorial, não
literária. Descreve um estilo de publicação, um formato gráfico e nada mais.
Tecnicamente, é como dizer “livro de bolso”, ou como dizer “volume em papel couché, encadernado, lombada gravada a
ouro”. Diz tudo sobre a aparência, nada sobre o conteúdo.
Geralmente confundimos duas coisas importantíssimas: um
formato gráfico a que chamamos “folheto de cordel”ou “folheto de feira”, e um
corpo de obras poéticas que poderíamos chamar, como sugeriu Ariano Suassuna, de
Romanceiro Popular Nordestino.
Os dois “se casaram”desde a década de 1890 quando Leandro
Gomes de Barros, no Recife, começou a publicar nos folhetos os poemas do
Romanceiro que ele próprio escrevia. Os dois já existiam. Folhetos eram
publicados em Portugal e vendidos no Brasil há muitíssimo tempo. Personagens de
Machado de Assis compram folhetos da Princesa
Magalona na calçada do Rio de Janeiro (releiam “Uns braços”, ambientado em
1870).
Quanto aos poemas do Romanceiro, antes do folheto eles
eram copiados à mão, fartamente, repetitivamente, prazerosamente, naquele
século 19 em que não havia à disposição dos poetas impressoras, xerox,
mimeógrafo, fotografia, nada, nada, nada – havia apenas moças de letra bonita
que preenchiam suas longas noites de ócio e cativeiro doméstico, à luz de
lampiões, orgulhosamente e caprichadamente copiando tudo que lhes davam para
reproduzir: poemas, salmos e orações, receitas culinárias.
Essas cópias manuscritas eram o que Manuel Diegues Jr. chamou
de “versos de traslado”. Era assim que iam passando de mão em mão e de família
em família as produções poéticas daquele tempo. Os copistas especializados não
existiam apenas nos mosteiros medievais. Copistas existiram onde quer que
houvesse a necessidade de preservar e difundir, antes do acesso à imprensa,
textos de qualquer natureza.
Foi só no fim do século 19, com Leandro, que esses versos
chegaram ao folheto. Porque folhetos já existiam, e não só em Portugal. Havia a
littérature de colportage da França,
os pliegos sueltos da Espanha, os chapbooks da Inglaterra e por aí vai. O
mesmo fenômeno editorial do cordel brasileiro: o livro para o editor que não
pode publicar livros e para o leitor que não pode comprá-los. O livro
vagabundo, no melhor sentido do termo: livre, errante, solto, produto invisível
da economia informal. O livro dos que não têm direito ao livro.
Para usar uma metáfora bem no espírito leândrico, o
Romanceiro é a alma, o folheto-de-cordel é o corpo. Como todo corpo, é uma
reencarnação provisória. Os corpos passam, o espírito vai em frente. Se temos
hoje acesso às tragédias gregas e aos poemas romanos, não é apenas porque
alguns espécimens dos seus corpos originais foram salvos nos museus. É porque
foram transpostos para outras línguas, outros formatos.
Hoje, grande parte do que um dia já foi papiro ou
pergaminho está gravado em pendraives, em agadês, em nuvens. São novas encarnações para textos que
(cruzemos os dedos) não morrerão jamais.
Daqui a cem anos, caso nossa civilização sobreviva, estaremos
lendo desde a Chegada de Lampião no
Inferno de José Pacheco até a Divina
Comédia de Dante Alighieri em formatos físicos que seus autores jamais
imaginariam. Hologramas quânticos, implantes semióticos, écrans-de-contato,
recitação por sintetizadores? Não importa: serão novos corpos para prolongar a
vida desses espíritos feitos de palavra.
No princípio (antes de existirem tinta, pena, papel) era
o Verbo. A palavra poética, “gritada à queima-pele”. No fim, também será.