O livro que ilustra este post é da Editora 10/18 francesa;
eu já havia folheado um volume com esta mesma capa, anos atrás, numa livraria.
O título Grande Sertão: Veredas foi
trocado por Diadorim. Para alguns
puristas, seria o mesmo que rebatizar O Coração das Trevas como Marlow, ou
O Velho e o Mar como Santiago. Além do mais, o ser folclórico
que lhe adorna a capa, com suas calças branquinhas frouxas nas pernas, seu
chapéu redondo, parece um vaqueiro do Pantanal ou dos pampas gaúchos, não sei,
só sei que na minha memória visual não tem nada a ver com os vaqueiros dos
Gerais e do sertão do São Francisco.
A obra de Guimarães Rosa teve traduções muito elogiadas para
o italiano e para o alemão, por Edoardo Bizarri e Curt Meyer-Clason, cujas
respectivas correspondências com o autor já foram publicadas. Na língua inglesa
os resultados têm sido menos retumbantes. Há traduções para o Grande Sertão (Harriet de Onís) e para Primeiras Estórias (Barbara Shelby), talvez
alguma outra, mas nada que produzisse um impacto maior. Parece que no italiano
e no alemã houve uma entrega mais lúdica dos tradutores às inesgotáveis novidades
verbais da voz que narrava o livro.
Agora a tradutora australiana Alison Entrekin divulgou
algumas páginas do seu projeto de tradução do GS:V para o inglês. (Veja entrevista e link: http://tinyurl.com/z6cgsle). São as
primeiras páginas do livro, páginas que além do problema da linguagem são
extremamente dispersas de assunto, Riobaldo toca nos numerosos temas
orquestrais da narrativa, mas como em todo início verboso desse tipo, ele está
nos dando ali dicas ou revelações que ainda não temos como avaliar, porque é a
primeira vez que estamos ouvindo falar na pessoa A ou no lugar B.
São aquelas páginas introdutórias que parecem ter a
função de trazer o leitor mais facilmente para dentro do ambiente onde a
história de verdade, a coisa real, vai começar a ser contada pra valer daqui a
pouco, depois que todos os cavalheiros e as damas estejam bem assentados, bem
acomodados, mas enquanto isso vamos encompridando a introdução para que na hora
da narrativa decolemos todos juntos. Ou
seja: é o preâmbulo a-voo-de-pássaro sobre o livro e seu mundo, feito pelos contadores
profissionais de histórias nos cafés do Cairo ou os memorialistas
não-confiáveis de calçada de venda mineira. Só começa a história quando estiver
todo mundo calado e prestando atenção.
O livro de Rosa abre-se com o sésamo famoso: “Nonada”. Eu
sempre achei que a tradução inglesa para essa palavra mágica fosse “Nonothing”.
Há alguns argumentos em favor disso. Primeiro, mantém a mesma letra inicial. Se há algum conselho inexplicável que eu tenha
para dar, que seja este: “A tradução de uma obra literária deve preferencialmente
começar pela mesma letra com que começa o texto original.” Por que? Não sei.
Porque assim fica mais bonito.
Nonothing tem também a mesma cadência, três sílabas na
cadência fraca-forte-fraca, no-na-da,
no-no-thing. É um pé de verso
harmonioso em si mesmo, como a constelação das Três Marias. Muito bem. Alison
Entrekin começa sua tradução assim: “Nonought”. O que é muito bom também. A
inicial é mantida. O sentido é o mesmo, mas com um acréscimo positivo, porque
não apenas “nought” (ou “naught”) é uma forma antiga para “nada”, mas sua
pronúncia o aproxima de “not”, não. E isso enriquece essas variantes que o
cérebro computa à velocidade da luz: não-nada, não-não.
Há o detalhe da cadência, que em “Nonought” é diferente.
Esse “ght” final é uma daquelas muitas terminações quase-mudas de palavras, tão
frequente em outras línguas e menos assim em nosso português, que tende a
percutir cada sílaba como se fosse uma tecla. “Nonought” seria pronunciado talvez
“no-nó-t”, com esse “t” (o som que a ele corresponde) constituindo uma meia
sílaba, um esvair-se sem terminar. O que aliás se afina com o próprio romance,
que não termina com a palavra “Fim”, e sim com o símbolo matemático do
infinito.
Imagino não faltar muito para algum gonzo-tradutor propor
“Na-nani-nanão” para essa famosa abertura, tão marcante quanto a da Quinta
Sinfonia. Mas a parte divertida de traduzir é justamente ter tempo para ficar
sopesando todas essas pedrinhas, sabendo que somente uma delas será usada.
Ou pensar numa possível abertura francesa: “Nenéant”.
Mais uma vez três sílabas, só que agora em cadência diferente do original, mas
uma cadência fraca-fraca-forte que evoca a cauda de uma serpente e no final a
cabeça que se ergue. Mais um registro: a tradução inglesa antiga, de Harriet de
Onís, ao invés de tentar agarrar “nonada” pelos chifres, adota uma paráfrase
inofensiva: “It’s nothing.”
Diz Alison (que já traduziu Clarice Lispector e Chico
Buarque, além de autores de projeção mais recente como Paulo Lins, Cristóvão
Tezza e Daniel Galera):
“Tirei três semanas de folga do romance em que eu estava trabalhando, e traduzi três páginas [do livro de J. G. Rosa.] Sim, isso mesmo: três páginas, não três capítulos. Numa profissão em que alguns consideram 2 mil palavras por dia uma quantidade razoável como padrão, que tipo de lunático aceitaria de bom grado um texto onde só é capaz de produzir 860 palavras ao longo de três semanas? Claro que eu estava ainda ‘fria’; talvez dentro de mais algum tempo eu pegasse o ritmo da coisa e duplicasse esse número. Mas provavelmente não. Quando um texto é complicado, ele continua complicado.”