Se isto
aqui fosse um romance, refiro-me ao gênero literário, não ao coeficiente amoroso-afetivo
da história narrada, eu começaria falando de mim mesmo e das origens dos dois
ramos familiares que me deram origem; fá-lo-ia enumerando antepassados,
entreparando aqui e ali para narrar um episódio edificante ou uma anedota
familiar... enfim, dando uma idéia completa da linhagem que me produziu e só
então, mesmo que já fosse lá pelo terceiro volume, dando início à narração das
aventuras propriamente ditas do personagem introduzido com tanta largueza, ou
seja, eu mesmo. Acontece que isto aqui não é um romance, muito menos esses do
tempo em que se usava pena e tinteiro; isto aqui é uma carta frenética, desesperada,
rabiscada às pressas no convés de um navio impossível que se aproxima de um
desenlace fatal, uma catástrofe tão horrenda quanto inevitável, mas mesmo sendo
certo o nosso fim restam-me alguns minutos em que, em meio à balbúrdia geral,
rabisco com força estas linhas que pretendo antes do instante final arremessar
para longe do navio devidamente arrolhadas no interior do objeto flutuante que
não nomearei para não ofender a inteligência do leitor de hoje em dia.
Vejam
só, metade do tinteiro já se foi e num certo sentido ainda nem comecei! Mas,
reiterando o que acabei de afirmar: é irritante constatar que uma parte da
crítica continua a exigir da literatura contemporânea a presença de certos
efeitos narrativos, certos jogos de cena, certas cerimônias de cumplicidade
entre autor e leitor diante da inverossimilhança irremediável de certas partes
da obra, mas afinal o leitor compreende que o autor se diverte escrevendo
aquilo, e o autor pressupõe, porque pressupor é um karma dos solitários, que o
leitor vai dar grandes gargalhadas com aquilo e recomendar a algum amigo. Nada
temos contra certas convenções literárias, mas francamente, exigir que todo
início de texto comporte um resumo genealógico do protagonista é como querer
impor aos poetas, como modelo, esses poemas onde todas as palavras têm a mesma
inicial.
É por
isso, e por outras coisas além disso, que a jovem geração da literatura
contemporânea procura refugiar suas obras por trás de anteparos conceituais
como “movimento X”, “manifesto Y”, “escola Z”, e talvez não seja cabotinismo de
nossa parte supor o surgimento possível de um gênero designado por algo como “Histórias
de Navios Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença
Divina”, e que um dos pressupostos do gênero fosse, na clivagem moderna dessa
escolha, a preferência pela narrativa rápida, incisiva, crucial, frases curtas qual
navalha, mas sem abrir mão do apanágio de toda a literatura que se preza
durante os derradeiros decênios, a literatura da perquirição subjetiva dos
meandros do ser, porque mesmo nessas narrativas, digamos, forjadas no calor da
refrega, o pensamento humano ainda é capaz de elevar-se altaneiro, pairar por
cima das procelas, distanciar-se espiritualmente o tempo necessário para ver
parar o tempo, parar e estender-se todo, oferecendo-se, diante de si.
Note-se
que (vou ter que resumir essa discussão, o oceano se escancara, lá vem a Coisa)
não há nenhuma conotação sobrenatural no uso acima da palavra espírito, porque
para nós ela representa uma epifania totalmente nos domínios dos neurônios, mas
cuja intensidade leva a vítima (pois não pode ser outro o termo) a procurar uma
explicação de grandeza cósmica para o que lhe aconteceu.
Enfim –
são muitas as questões de peso (nem vou falar na tinta, que só resta um tantinho)
sobre essa questão dos textos fundadores do gênero das “Histórias de Navios
Catastroficamente Prestes a Naufragar Por Erro Humano e Indiferença Divina”;
deixando a questão em aberto, convoco meus pares para a discussão destes
palpitantes temas, tudo isto, é claro, dependendo da possibilidade deste
invólucro-ao-mar ser avistado, ser recolhido, ser aberto, ser lido, ser
decifrado, ser compreendido, ser divulgado, ou seja, ironicamente: supondo que
aconteça a este farrapo mal escrito e salpicado de água e sal o que não
aconteceu aos muitos livros que publiquei na treva e que da treva jamais saíram,
mas o que importa é ser otimista, de modo que vou terminar isto, dobrar, enfiar
no seco interior da garrafa, naquele labirinto cilíndrico espelhado, este
relato de improviso que pode até talvez pecar no factual, mas contém o gérmen
da uma discussão cuja importância me trouxe força extra ao braço que atirou a
garrafa cor-de-laranja por cima da amurada, entregando confiante estas linhas à
magnanimidade das ondas, onde boiaram por muito tempo antes de serem recolhidas,
desdobradas, lidas pela primeira vez, futuro leitor, como está acontecendo
agora, e----vi------dente---------------