Quando eu era menino e comecei a ouvir música no rádio,
ele era um dos maiores cantores do Brasil, um equivalente ao que Roberto Carlos
seria anos mais tarde. Eram ele, Nelson Gonçalves, Orlando Silva... Quem mais? Falo
do ano de mais-ou-menos 1960, quando Cauby se apresentou em Campina Grande, na Rádio
Borborema, e eu o vi em pessoa, de relance, pela primeira e última vez.
(Digressão: a Rádio Borborema nessa época era um pé de
escada no Calçadão da Rua Cardoso Vieira, entre a Sorveteria Flórida, que
ficava na esquina, e o Café São Braz, que valorosamente continua no mesmo
lugar. Ou pelo menos estava, da última vez que passei por lá. Pelo andar da
carruagem, pode ser sido substituído por uma farmácia, porque em Campina tem “bem
pouquinha” farmácia.)
Cauby era nosso maior cantor porque vivíamos ainda o auge
da Música Radiofônica Brasileira, que foi substituída pela Música Televisiva
Brasileira, para o bem e para o mal. O rádio continua tocando, mas não é mais
ele que impõe os grandes sucessos. A TV chancela e carimba quem vai tocar, e as
rádios vão atrás.
Era um grande artista, sem dúvida, no quesito vocal, no
quesito histriônico (o que modernamente chamamos “presença de palco”), na
diplomacia, no trato carinhoso com os fãs, na simpatia meio artificial mas
provavelmente sincera, porque ele adorava o showbiz, adorava os aplausos, o
sucesso. Mais que o sucesso das manchetes e das paradas: adorava o sucesso do
recinto, de estar naquele instante entusiasmando com sua interpretação um
auditório cheio de pessoas. O sucesso visceral, epidérmico, aqui-e-agora, que o
palco proporciona a quem sabe driblar suas armadilhas e usar bem suas
alavancas. O sucesso de Cauby corresponde ao espírito da canção de Chico
Buarque, “Bastidores”, que ele adotou para si. A carreira de Cauby está inteira
naqueles versos e naquela ondulação melódica. Seu destino era cantar junto à
estridência triunfal de uma Big Band ou no aconchego etílico de um piano-bar.
Visto de perto percebia-se que ele era moreno, “pele cor
de oliva” como se diz na literatura, uma figura latina ou cabocla, moreno claro
na linha de Castro Alves ou Gonçalves Dias. Usou por muito tempo um bigodinho
fino, e somente agora, em retrospecto, percebo que se parecia bastante com
Prince, o jeito meio andrógino, a firmeza inabalável, a pose imperial
equilibrada pelo sorriso perpétuo e radiante. Um Prince bem comportado, é
claro, um Prince que só usava black-tie e impecáveis sapatos pretos. Somente
após a idade madura aderiu aos babados, aos frufrus, aos paetês, e acho que a “fase
Las Vegas” de Elvis Presley o ajudou nessa transição.
Sua música foi sempre a música romântica, e era ele o
modelo permanente para os que surgiram ao longo da minha adolescência: Agnaldo
Rayol, Agnaldo Timóteo, Altemar Dutra, Nelson Ned, Jessé. A música de amor
cantada com arrebatamento stanislavskiano, sem pudor, sem peias, “emoção à flor
da pele”, como prometem os cartazes desses shows. A grande maioria das chamadas
“duplas sertanejas” de hoje não faz música do sertão. Faz esse tipo de música,
música romântico-urbana em clima de opereta ou de chá dançante. Apesar dos
chapéus de cowboy, aqui e ali uma bota ou camisa xadrez, apesar do figurino e
da atitude que lembra mais Tin Pan Alley do que Vegas, essas duplas todas são
herdeiras de Cauby e não de Tonico e Tinoco.
Quando veio a Campina Grande, não havia ainda grandes
shows em teatros, praças, ginásios, estádios. O maior cantor do Brasil cantou
no auditório da Rádio Borborema, onde cabiam cento e poucas pessoas. Ele,
também, subiu aqueles gastos degraus de pedra que eu tanto subi, garoto,
levando o envelopezinho com a resposta do teste semanal do programa “Falando de
Cinema” de Humberto de Campos.
Meu pai trabalhou anos como redator naquela rádio, e
quando Cauby veio cantar ele levou a mim e a minha irmã Clotilde. A platéia
estava repleta, e ouvimos o show num salão ao lado do auditório. Era o salão da
diretoria da rádio, acho, apinhado de pessoas. A certa altura da noite o astro adentrou
o recinto, cumprimentou um por um, apertou todas as mãos. Não lembro se apertou
a minha. Alguém lhe disse: “Cauby, a rua está cheia de gente que não pôde
entrar. Claro que você não vai poder cantar para elas, mas podia pelo menos vir
até a sacada, dar um aceno?...” “Claro,”
disse ele.
Foi até a sacada, e quando a multidão o viu elevou-se um clamor de
aparecimento do Papa na Praça de São Pedro. Ele ergueu os braços, teatral,
pedindo silêncio. Fez-se um silêncio de alfinete caindo em paralelepípedo. E
ele encheu a rua com o vozeirão belo e potente: “Conceição.... eu me lembro
muito bem...”
Todos lembrarão.
Links:
“Bastidores”