Há um texto famoso de Robert Louis Stevenson sobre os
sonhos, que incluí na minha edição/tradução de O estranho caso do dr. Jekyll e Mr. Hyde (São Paulo: Hedra, 2011). “Um
capítulo sobre o sonho” é um longo depoimento autobiográfico em que Stevenson
fala sobre a importância dos sonhos em seu processo criativo, com riqueza de
exemplos, contando episódios tão bizarros que só podem mesmo ser verdade,
porque um ficcionista imaginativo como ele não teria a menor necessidade de
mentir.
A certa altura, Stevenson narra uma complicada história
de amor e de crime que inventou dormindo, um romance inteiro, cheio de pessoas e
de reviravoltas de enredo, com uma revelação final espantosa, quando uma das
personagens, numa frase curta, revela toda a verdade escondida até então. O
autor diz que acordou estupefato, e confessa a sua perplexidade diante disto.
Se a mente que sonhava (raciocina ele) é a dele próprio, como é possível essa
cisão psíquica onde uma parte da mente consegue esconder da outra parte um
segredo? A mente que conta e a mente que presencia a história não são uma só?
Então, como é possível o segredo? Como é possível a espantosa surpresa final
diante de algo que nós mesmos estávamos pensando?
A mente que sonha e a mente que escreve literatura são a
mesma? Acho que cada pessoa é diferente. Muitos dos meus contos e poemas se
originaram de sonhos, que memorizei com cuidado ao acordar e depois, levantando
da cama, anotei sem perda de tempo. Mas raramente o sonho vem com a história
completa. Em geral ele fornece um sentimento, uma ambientação, um fragmento
meio “nonsense” de um episódio que depois eu procuro reconstituir e ampliar,
sem tentativa de explicação. Charles Dickens comentou, numa carta de 1843:
“A propósito de sonhos, não é uma coisa estranha que autores de ficção nunca sonhem com suas próprias criações, reconhecendo, mesmo adormecidos, que elas não têm existência concreta? Eu nunca sonhei com meus personagens, e acho que isso é tão impossível que sou capaz de apostar que Walter Scott nunca sonhou com os dele, por mais reais que sejam.”
Lewis Carroll registrou em 1899 um sonho no qual ia
visitar uma família de amigos, e durante a visita ficava sabendo que uma das
filhas, Polly, estava se apresentando numa peça num teatro local. Nesse
momento, Carroll avistava a própria Polly sentada nas proximidades, só que era
Polly quando tinha nove ou dez anos apenas. Ele perguntava à mãe se poderia
levar Polly ao teatro consigo, e ela autorizava. Diz ele:
“Eu estava claramente consciente do fato (mesmo sem a menor surpresa diante daquela incongruência) de que eu estava levando a Polly criança para assistir uma apresentação da Polly adulta! Ambas as imagens, Polly como criança, e Polly como mulher, são, imagino, igualmente nítidas na minha memória normal, da vigília; e ao que parece durante o sonho eu dei um jeito de dar a cada uma delas uma individualidade independente.”
Como se sabe que Carroll tinha fascinação por garotinhas
(uma espécie de pedofilia platônica, pois não há registro de qualquer ação dele
neste sentido, o que condiz com seu temperamento tímido e cortês), dá para
perceber que em sua memória a mulher crescida não tinha conseguido eliminar do
seu mundo imaginário a menina.
Edmond de Goncourt (escritor, criador de um famoso prêmio
literário francês juntamente com seu irmão Jules) conta que pouco tempo depois
da morte do irmão, a quem era muito unido, sonhou que caminhava ao lado dele
pelas ruas de Paris, e encontrava um grupo de amigos, entre os quais Téophile
Gauthier. Todos vinham ao seu encontro e lhe apresentavam as condolências, e
ele as aceitava, roído pela dúvida, porque avistava a poucos metros de
distância o irmão vivo, esperando para continuarem a caminhada, e também tinha
bem clara na memória os anúncios fúnebres que vira pregados por toda parte.
É um sonho que lembra o que Gabriel Garcia Márquez conta
no prólogo dos seus Doze Contos
Peregrinos (1992). Quando morava em Barcelona, o escritor sonhou que estava
acompanhando o próprio enterro, a pé, num grupo de amigos em clima de festa,
embora todos trajassem luto. Amigos do mundo inteiro tinham comparecido à
cerimônia, e Gabo sentia-se feliz por ver todos juntos, depois de tanto tempo.
Quando tudo chegava ao fim todos começavam a ir embora e ele tentava
acompanhá-los, mas alguém lhe dizia: “Você é o único que não pode ir embora.” E
ele conclui:
“Só então compreendi que morrer é não estar nunca mais com os amigos”.