Quarta-feira passada, passei a tarde no Museu da Imagem e do Som
(MIS), no Rio de Janeiro, participando do depoimento de Geraldo Azevedo para o
projeto Depoimentos Para a Posteridade. A sessão de cerca de quatro
horas e meia de conversa, dirigida pelo jornalista João Pimentel, teve como
entrevistadores eu, Eliana Pittman, Neila Tavares e Carlos Morel.
Acompanho o trabalho de Geraldo há décadas. Ele é de uma
geração de compositores e cantores um degrau acima da minha: Alceu Valença, Zé
Ramalho, Elba Ramalho, Fagner, Ednardo, Belchior etc. Artistas nordestinos que
gravaram seus primeiros discos nos anos 1970. Depois deles veio uma segunda
leva de “paraíbas”, incluindo eu, Ivan Santos, Lenine, Fuba, Lula Queiroga,
Tadeu Mathias, Alex Madureira e muitos outros.
É sempre bom ouvir a narração da carreira de alguém por
ordem cronológica, ver a sucessão de pequenos fatos que vão, sem que a gente
perceba, nos conduzindo na direção da vida artística. Geraldo nasceu num sítio
em Jatobá, nas vizinhanças de Petrolina (PE). Antigamente, era distante; hoje,
o local foi engolido pela cidade, que cresceu muito mais do que sua vizinha
Juazeiro (BA).
Geraldo conta que na infância a escola ficava a alguns
quilômetros de distância, e ele ia montado num jegue, que já sabia o caminho:
parava exatamente no local da professora. Na volta, no sol a pino, o calor era
tanto que ele adormecia agarrado ao burro em movimento (como o vaqueiro do
conto “O Burrinho Pedrês” de Guimarães Rosa), e o burro voltava para casa sem
precisar de guia. A mãe de Geraldo, dona Nenzinha, alfabetizou todos os filhos,
e também o marido, já adulto.
Jatobá ficava pertinho do rio São Francisco. Às vezes, nas
cheias do rio, as árvores onde os meninos brincavam ficavam só com a copa do
lado de fora, e o pai advertia: “Depois que baixar, não subam nessas árvores,
está cheio de cobra lá em cima.” As cobras subiam para se proteger.
Ele lembra uma época, já rapaz, quando a equipe de Carlos
Coimbra andou por lá filmando Lampião, Rei do Cangaço, com Vanja Orico e
Geraldo del Rey. Os dois Geraldos ficaram amigos e tocavam violão juntos. O
método preferido naquela época era um daqueles métodos de violão “pé-duro”, de
acordes “quadrados”, o Método Bandeirantes. Na mesma época, Geraldo
conheceu João Gilberto, que tinha ido visitar o pai em Juazeiro.
Geraldo veio ao Rio trazido por Eliana Pittman, que o tinha
visto tocar violão nos bares do Recife. Era jovem, e de repente viu-se tocando
com pessoas como Antonio Adolfo e Erlon Chaves. “O violão não tinha captador,
era com microfone,” lembra ele. “Quando eu sabia a música, aproximava o violão
do microfone. Quando não sabia direito os acordes, afastava”.
Ele fala também dos seus primeiros contatos com outros
artistas, inclusive Geraldo Vandré. Quando Vandré se escondeu por causa do
golpe de 1968, os dois fizeram a “Canção da Despedida”, que segundo Geraldo foi
composta nos lugares onde ele estava escondido: na casa de D. Aracy Moebius
(esposa de Guimarães Rosa) e depois no sítio da modelo e atriz Marisa Urban.
Ele fez um longo depoimento sobre as torturas que sofreu
depois que foi preso pela ditadura, porque tinha amigos envolvidos com
organizações clandestinas e colaborava com desenhos em alguns panfletos. E
ironiza o regime. Quando ele e Alceu Valença gravaram seu primeiro disco
juntos, em 1972, o então ministro Jarbas Passarinho apareceu na imprensa
exibindo o disco, o primeiro disco quadrafônico da música brasileira. Depois,
quando Ernesto Geisel visitou a Alemanha para discutir energia nuclear, no
pacote de presentes que levou para as autoridade estava outro disco do ex-preso
Geraldo.
E por aí vai. A carreira de Geraldo me parece uma carreira
única na sua geração de compositores nordestinos. Não conheço nenhum outro,
naquela faixa, que domine o violão como ele, que tenha sua inventividade de
melodia e harmonização. Cria da Bossa Nova na adolescência, ele evoluiu para
outros estilos na idade madura, e assimilou influências da música africana,
latino-americana, o rock, o tropicalismo e o mais que se seguiu.