Existe uma oposição, que acho equivocada, entre linguagem coloquial e norma culta. Oposição que no Brasil (talvez em outros lugares também) ganhou um viés de marca de classe. Ser de classe superior é ser capaz de usar uma linguagem culta, gramaticalmente impecável, para demonstrar estudo. Gramática, ortografia, pronúncia e vocabulário são crachás necessários na subida da pirâmide social. É bom, é ruim, é certo, é errado? Não sei, o debate está em aberto, sempre acho melhor saber das coisas do que ignorar. Não se organiza essas coisas por decreto, e o fato é que aqui funciona assim.
Vem daí esse sintoma linguístico das pessoas usarem
palavras de fora da linguagem comum quando querem alegar superioridade social e
moral sobre os outros. Quando um político precisa afirmar em público que é um
homem honesto, estas palavras (tão humanas, tão honestas!) não lhe bastam.
Dizer isso qualquer pé-rapado pode! Ele precisa dizer que é um “cidadão de
reputação ilibada”, e com esse vocabulário acredita estar colocando em xeque
pelo menos dois terços dos que o criticam. Falar assim é como dizer: “Eu estou
de terno e gravata. E você? Jeans e havaianas? Rá-rá-rá.”
A história da língua brasileira é a história de uma
progressiva desternoegravatização da fala, do abandono de uma língua engessada,
protocolar, em favor de uma língua mais flexível, solta, aberta para novidades,
capaz de reproduzir o sentimento e a personalidade do falante em cada momento.
Me espanta saber que ainda hoje existe quem ache errado usar pronome oblíquo em
começo de frase. E impressiona constatar que cem anos atrás Lima Barreto já
escrevia como escrevemos hoje, e que as academias literárias de hoje estão
repletas de seguidores de Coelho Neto - no que Coelho Neto, grande escritor,
tinha de pior: a pompa ornamental da prosa.
Isto não quer dizer que todo mundo deva falar como os
personagens de Adoniran Barbosa ou de Patativa do Assaré, mas que uma língua
madura e saudável é capaz de acolher essas variantes sem que seu núcleo desmorone.
E o núcleo da língua não é o juridiquês insuportável do editorialismo político
e classista de nossa imprensa. O núcleo é Camões e é Machado, é o Padre Vieira
e o cachaceiro Gregório de Matos, é Oswald de Andrade e seu aparente antípoda
Fernando Pessoa. E são também (olha o pulo de susto!) os letristas da música
popular, que muitas vezes dominam a gramática e o vernáculo melhor do que
muitos medalhões. Melhor do que muitos beletristas que se dão ares mas não
sobreviveriam na palavra impressa sem a proteção invisível da força-tarefa de
revisores que caminha atrás deles, limpando os erros que deixam cair pelo
caminho.