Os dois últimos livros que li em 2015 não poderiam parecer mais diferentes um do outro, mas têm um inquietante detalhe em comum. O penúltimo foi a biografia Trotsky (1986) escrita por Paulo Leminski, e incluída no volume Vida (Ed. Sulina, 1990, ao lado das vidas de Cruz e Sousa, Bashô e Jesus Cristo). O outro, que estou prefaciando para uma reedição da Alfaguara para este ano, foi A Guerra dos Mundos (1898) de H. G. Wells. O que os dois têm em comum? O terror da fome.
Leminski evoca, com traços rápidos e vigorosos, a
devastação produzida na Rússia pela I Guerra Mundial e pela Guerra Civil que se
seguiu à Revolução de 1917. Além dos milhões mortos pela guerra, milhões
morreram de inanição nas estepes da futura URSS. E Wells descreve o terrível
mês subsequente ao desembarque devastador dos marcianos na Inglaterra. O terror
de não ter o que comer, e as coisas que as pessoas roem com sofreguidão para
não morrerem.
Quando a civilização colapsa, todo mundo continua
precisando comer todo dia. Seguem-se saques, arrombamentos, assaltos, a maioria
feita por pessoas que jamais colheriam sem autorização uma goiaba na goiabeira
do vizinho. Mas a fome transforma todo mundo, primeiro em bandidos, depois em
animais. Tal como acontece em Ensaio sobre a Cegueira (1995, lido em maio) de
José Saramago, onde a fome é agravada pela cegueira. Saramago lembra Wells
inclusive na ausência de nomes próprios nos seus personagens designados por
detalhes (o médico, o clérigo, etc). E na lucidez sobre as coisas de que o ser
humano é capaz.
Literatura fantástica? Não tanto quanto a terrível fome
que devastou a Itália durante a campanha da FEB na II Guerra, descrita por
Boris Schnaiderman em Guerra em Surdina (1964; lido em agosto). A fome dos pracinhas
ilhados na neve, mas principalmente a fome da população local, e o modo
discreto, tocante, como as jovens italianas se entregavam em troca de algumas
latas de conservas, diante da família que fazia que não estava vendo. Uma área
cinzenta separando sexo livre, estupro e prostituição, descrita de modo
compassivo e honesto pelo autor.