(Noel Rosa, por Thiago Bertoni)
Pois é, Noel Rosa faz 105 anos. Noel e Adoniran Barbosa
(ambos de 1910) falavam de um tipo de gente muito específico, o sujeito de
certo nível que pelas contingências da vida está precisando dormir num banco de
praça, porque foi desalojado do muquifo que habitava de graça. É um momento zen
da vida humana. A vida é uma coisa diferente para quem só tinha o direito de se
concentrar em duas coisas: o que eu vou comer hoje, e onde vou dormir a próxima
noite.
“Eu, Mato Grosso e o Joca” são personagens de um que
poderiam estar disputando o banco de praça de “O orvalho vem caindo”. Eu
entendia que umas daquelas histórias se passavam em São Paulo, outras no Rio.
Mas eu achava que conhecia os ambientes, de tanto ver as chanchadas no cinema.
Tinha uma vaga idéia dos principais pontos de referência turística no Rio. Eu
era um menino. Então vi numa revista Brasil Enigmista um artigo de alguém
destacando e comentando versos de Noel Rosa. Reconheci algumas canções que
volta e meia eram ouvidas no rádio. Tudo aquilo era dele.
Noel tem virtudes variadas como letrista, mas eu queria
bater na tecla de sempre, a da letra que conta uma historinha. Ou letras que
são praticamente um cartum em animação, como “Conversa de Botequim”, “Com que
roupa”, “Três apitos”... São gifs animados em várias partes. Não é uma história
com começo, meio e fim; é uma sucessão de flashes com parcial passagem de
tempo, mais em uns, menos em outros. Flashes poéticos que às vezes contam mais
sobre um pedaço da história humana do que um livro inteiro.
O freguês do botequim de Noel é como o Riobaldo de Rosa, uma
voz incessante, reiterante, minudente e disposta a refletir em voz alta cada
luz que lhe mandar a vida. Ele fala com o garçom como o jagunço falava com “o
doutor”. Aliás, essa letra parece mais com o monólogo rosiano Meu tio, o
Iauaretê, com Cacá Carvalho. Uma peça com apenas dois atores, um só falando, o
outro só escutando, quase sem se mexer. No fim, um deles mata o outro. (No
botequim o garçom não fala, mas escapa.)