(ilustração: Mana Neyestani)
Existe uma discussão em curso, Brasil afora, sobre as
pessoas de origem humilde que conseguem cursar uma universidade, mesmo sendo o
que se chama de analfabetos funcionais. Sabem ler, sim. Mas aprenderam apenas a
tarefa mecânica de identificar palavras. Não sabem o que aquilo quer dizer.
Podem, se estimuladas, dar uma definição passável de cada uma daquelas palavras
que rabiscam. Mas se alguém lhes perguntar o que significa um mero parágrafo de
jornal sobre assunto que não dominam, terão balbuciantes dificuldades. Diante
de um parágrafo da literatura ou da ensaística, naufragarão.
Isso é uma vergonha? De jeito nenhum. É apenas uma erro de
programação (ou uma programação propositalmente defeituosa, dirão os mais
paranóicos). Nossa civilização precisa de gente assim, que sabe copiar coisas
escritas sem entendê-las. Isso deve ter começado desde os tempos cuneiformes,
um poeta analfabeto ditando, e um escriba bronco mas competente cravando as
runas na argila. Exatidão no registro era mais importante do que entendimento
próprio. Hoje não. Exatidão de registro existe a três por dois. O que falta são
mentes com mais do que os dois neurônios necessários à alfabetização.
Isso não implica em zombar de quem não sabe ler, mesmo os
supostos leitores sofisticados. Há gente com graduação universitária que
atribui a Shakespeare ou a Nelson Rodrigues os sentimentos de uma frase dita por
um personagem: porque não têm hábito de ir ao teatro, não entendem o jogo de
idéias do teatro, e acham que toda frase escrita por um dramaturgo é como um
editorial de jornal, um documento partidário, uma carta de intenções registrada
em cartório.
As pessoas atacam uma atriz no supermercado porque não
gostam da personagem dela na novela do horário nobre. As pessoas entendem mal o
que leem. As pessoas têm a mais tênue percepção possível do mundo de
teias-de-aranha narrativas em que vivem enredadas - pela TV, pelas revistas,
pelos websaites de fofocas. As pessoas comuns (acho eu) têm uma idéia ainda
mais esgarçada do que é o mundo real do que um adepto da Teoria Quântica.