quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

3994) "Crítica Syllyrica" (11.12.2015)



Alguém já disse que a melhor maneira de criticar, digamos, uma pintura a óleo seria produzir uma segunda pintura a óleo que fosse uma crítica da primeira. Professores de belas-artes pegam o desenho de um aluno e o copiam, mostrando como corrigir cada pequeno erro. Glauco Mattoso, em sua nova coletânea de sonetos, Critica Syllyrica (São Paulo: Lumme Editor, 2015) usa um método parecido. Ele pega sonetos famosos ou obscuros da poesia brasileira, e produz um soneto paralelo que lhe serve de crítica. Não que ele corrija o soneto do outro, não que tente refazê-lo “certo”: o soneto mattosiano é um comentário, geralmente sarcástico, ridicularizando aqueles modismos insuportáveis, o linguajar pomposo, as imagens clichê, etc.

A metalinguagem já faz parte dos métodos mattosianos desde o Jornal Dobrabil (1977-1981), a primeira publicação gay-concretista-anarquista-sadomasoquista-coprofágica da poesia brasileira. Paródia, pastiche, imitação, avacalhação, todos esses métodos desconstrutivos já estavam presentes naquela folha datilografada que acompanhei ao longo dos anos. Depois que o glaucoma reduziu drasticamente suas atividades datilografistas, Glauco dedicou-se à composição de sonetos, sendo provavelmente o recordista mundial do gênero.

Critica Syllyrica está todo vazado na “ortographia antiga”, uma opção radical do poeta, a quem parece não agradar essa sucessão de reformas mexendo em coisas sagradas como o hífen e o trema. Comentando o soneto “Risonhas Flores” de Sylva Alvarenga, ele diz: “Das epochas tentou Sylva Alvarenga / os themas amorosos por na flor. / Tentou, pois todos tentam, mas amor / não vive só de flores: há pendenga”. O livro reproduz, face a face, o soneto original e o soneto-crítica, onde Glauco, fiel ao personagem, reclama com frequência da hipocrisia dos poetas ao se dirigirem às “amadas”, e explicita as perversões sexuais que provavelmente jaziam encobertas nos versos castos dirigidos às “virgens puras” daquele tempo.

Crítica metalinguística como esta o poeta já tinha produzido ao reescrever o romance A Pata da Gazela (1870) de José de Alencar como A Planta da Donzela (Rio, Lamparina Editora, 2006), onde as sutilezas fetichistas e sadomasoquistas do original são exibidas e ampliadas. O mesmo que faz agora, com sonetos de poetas consagrados e poetas menores. Definição que ele contesta, ao comentar Amaral Ornellas: “Questiono si ‘menores’ elles são, / talvez um tanto obscuros. Mas fallar / pretendo, tambem, delles. Exemplar / é o caso deste Ornellas, de encheção.” Não escapam sequer os maiores, como Bandeira, Drummond, Bilac, Augusto dos Anjos ou Vinicius. A verdadeira sátira não perdoa ninguém.




3993) "Rubber Soul" (10.12.2015)



Estamos celebrando os 50 anos do lançamento de Rubber Soul, o disco que tornou-se uma esquina na carreira dos Beatles. Foi quando eles pararam de fazer shows e se fecharam nos estúdios, cujos recursos estavam começando a descobrir. Há versões diferentes do álbum na Grã-Bretanha e nos EUA. No Brasil, a versão que foi lançada (a que ouvi até furar) era a que abria no lado 1 com “Drive My Car” e fechava com “Michelle”, enquanto o lado B abria com “What Goes On” e fechava com “Run For Your Life”. É a essa edição que me refiro quando falo no disco.

Foi neste disco que os Beatles lançaram sua cítara indiana (“Norwegian Wood”) e sua própria versão da guitarra com distorção (“Think For Yourself”, gravada em novembro), logo depois que os Rolling Stones lançaram “Satisfaction” em outubro, com o famoso riff de Keith Richards.

Aqui no Brasil uma coisa que deve ter contribuído para a popularidade do álbum são as versões brasileiras que tiveram muito sucesso, como as de Ronnie Von para “Girl”, de Renato e Seus Blue Caps para “You Won’t See Me” e “Run For Your Life”, dos Golden Boys e de Agnaldo Timóteo para “Michelle”.

Em termos de letra, de imageria poética, “In My Life” é o primeiro elo de uma corrente nostálgica que se prolongaria tanto na “Penny Lane” de McCartney quanto no “Strawberry Fields” de Lennon. Ian McDonald diz que a psicodelia britânica era acima de tudo um retorno à infância. Uma infância talvez imaginária, mas feliz.

Lennon já disse detestar canções como “Run For Your Life”, e não sei como seria recebida hoje em dia uma canção dizendo “Olhe aqui, garota, prefiro ver você morta do que lhe ver com outro cara”. Lennon, como qualquer teddyboy de sua geração, era metade machista metade inocente. Depois, na sua fase feminista em Manhattan, ele depreciava a letra, a canção inteira. Mas a mente ciumenta daqui é a mesma de “Jealous Guy” anos depois, o que muda é o tratamento que o ciúme recebe. E só um sujeito reconhecidamente famoso por seu sarcasmo e cara-de-pau, como Lennon, teria crédito para dizer anos depois: “Eu estava inseguro, pensei que você talvez não me amasse mais”. “Run For Your Life” é um rockinho bobo mas seu refrão é muito bom, e ela já foi explorada em desenhos animados, etc.

E de fato essa música não é a cara dele, a cara dele é “Nowhere Man”. Talvez a gente nunca saiba com certeza, mas Lennon afirmava que essa música era uma espécie de estalo-de-Vieira ou maçã-de-Newton dele, quando ele descobriu que podia transformar numa canção uma coisa real que estava sentindo. Foi quando ele começou a considerar a letra algo mais do que uma roupa para que a música não saísse desfilando nua por aí.