sexta-feira, 23 de outubro de 2015

3953) A Vingança do Mestiço (24.10.2015)




Me encomendaram uma sinopse de filme de aventuras. Pensei em Trigger Montanares. Trigger Montanares é pistoleiro de aluguel. É mestiço e tem rompantes de sádico, porque todo mestiço é vingativo. “O conflito de duas raças antagônicas correndo dia e noite no seu sangue não pôde deixar de produzir-lhe aquela nevrose íntima que em alguns casos se externa em mera arruaça mas em outros se refina em crueldade.” O mestiço é mentiroso e dissimulado, porque pertencendo a dois mundos ele mente a ambos e na verdade não pertence a nenhum. Ninguém precisa dele, nenhum grupo o reivindica para si.

O parágrafo acima é um arremedo das justificativas dramatúrgicas para composição de personagens. Todo personagem é movido a referências, movido a citações, a indicações psicológicas, sociais, afetivas, místicas, o escambau. Só que referências, quando muito usadas, viram fórmula-fácil do lado de quem usa e clichê-redundante do lado de quem assiste ou lê. Geralmente encontramos, em histórias de ficção de qualquer gênero, indicações que nos dão uma primeira idéia básica do personagem e colorem os seus atos subsequentes. A grande maioria só faz sentido nas fórmulas a que pertencem (folhetim, novelão, etc.). Mestiços são vingativos, bastardos são cruéis, herdeiros são abnegados, cortesãs são piedosas, jovens das melhores famílias revelam-se capazes de ações escabrosas, desordeiros de rua descobrem-se capazes de um ato corajoso e final que os redime. Todo perfil humano é plausível. O verdadeiro teste é o que o autor vai obrigar esse perfil a fazer, e é aí que o escritor às vezes desmorona.

Um sentido epidérmico de realismo diz que representação realista é a que reproduz o que os olhos veem. Eu diria que existe um realismo funcional ou relacional, mais profundo e mais ancestral do que o dos nossos olhos. Quanto lemos Pato Donald não ligamos que ele seja um pato marinheiro nu da cintura para baixo conversando com um rato que dirige um automóvel. As relações entre eles, as funções cumpridas por eles são humanas, são reais; seu realismo é todo humano.

Jonathan Lethem pode imaginar um mundo futuro de policial “noir” onde os garçons dos bares são cangurus falantes. Colin Wilson pode imaginar uma situação em que a força conjunta de vários cérebros humanos possa fazer a Lua dar um meio-giro sobre si mesma e nos expor sua face oculta. Jorge Luis Borges pode dizer que existe um objeto banal que uma vez visto por alguém não pode ser esquecido. Basta que a premissa seja nítida, e que as funções e relações sejam plausíveis, e expostas numa linguagem sem confusão. Se a base for bem assentada, é possível voar mais alto nas consequências.