A morte de um grande escritor, como a de qualquer pessoa muito conhecida, enche a imprensa de maledicências e benedicências. Sempre tem alguém que aproveita o silêncio definitivo do outro para chamá-lo de imbecil ou de santo. Eduardo Galeano foi um grande escritor que, por ser de esquerda, jamais será lido pela metade da humanidade cuja religião política lhe assevera que o esquerdismo é tão contagioso quando o homossexualismo ou o alcoolismo: basta chegar perto daquilo e o “caba” já está contaminado pro resto da vida.
Alguns obituários destacam o fato de que Galeano teria
“renegado” seu livro mais famoso, As Veias Abertas da América Latina (1971),
talvez a maior denúncia da exploração do nosso continente pelos variados
colonialismos. Galeano publicou esse livro extraordinário aos 31 anos, embebido
daquele entusiasmo salvacionista que nos ajuda a enfrentar as desilusões da
juventude. Queixou-se, depois de velho, da prosa tediosa, dos seus poucos
conhecimentos de economia política na época. Seu livro cede com frequência ao
“melodrama da vitimização”, recurso retórico que a esquerda usa há um milhão de
anos. Mas não importa. É o calidoscópio dos milhares de fatos surreais e cruéis
que torna o livro um monumento de quase-ficção, como Os Sertões ou Casa
Grande & Senzala.
Talvez pela consciência dos seus excessos de entusiasmo,
Galeano nunca parou de evoluir. Textos como Vagamundo (1973) e A Canção de
Nossa Gente (1975), que li na mesma época, são literariamente brilhantes, muito
superiores às Veias Abertas, enquanto que o massacre político, econômico e
cultural do continente foi retomado, com mais maturidade, na enorme pesquisa
histórica que resultou na trilogia Memória do Fogo (Os nascimentos, 1982; Os rostos e as máscaras, 1984; O século do vento, 1986).