(Hemingway bebê)
Sempre que falo aqui em contos curtíssimos, contos-relâmpago
num mínimo de texto, cito o exemplo de Hemingway. Numa mesa do famoso restaurante Algonquin, em Nova York,
escritores debatiam para ver quem escrevia o conto mais curto, e Hemingway
rabiscou num guardanapo de papel as famosas seis palavras: “For sale. Baby shoes. Never worn” (“Vende-se. Sapatos
de bebê. Sem uso.”)
Textos tão compactos criam uma rede interna de relações,
como um ideograma. Por que alguém venderia um par de sapatos de bebê? E por que nunca foram usados? A explicação
mais imediata é de que alguém começou a preparar um enxoval de bebê e depois
desistiu, porque o bebê foi perdido. Há um pequeno drama humano nessas
palavras. E mais ainda quando, para
além do realismo da situação, atentamos para a sutileza de que o “autor” do
texto, certamente, são os pais da criança, e que o último detalhe (“sem uso”) é
o mais doloroso, mas valoriza o produto à venda.
A emoção está presente através
da secura da linguagem. Basta sugeri-la, sem exprimi-la diretamente.
O saite Open Culture (aqui: http://tinyurl.com/kkoa6kz) afirma que o
texto não é de Hemingway. Já existia em 1906, numa coluna de jornal chamada
“Terse Tales of the Town”, um texto dizendo: “For sale, baby carriage, never
been used. Apply at this
office”. Depois dessa data há
várias versões, algumas se referindo a sapatos de bebê, outras a um carrinho.
Há inclusive uma tirinha de quadrinhos de 1927 indicando-a como “o maior conto
curto do mundo”. (Não transcrevo todos
os exemplos aqui, por falta de espaço.)
Tudo indica que Hemingway, se é que a aposta no Algonquin é verdadeira,
se baseou mais na memória do que na imaginação, e de alguma forma conhecia
esses exemplos mais antigos.
Isso mostra o quanto, na cultura digital, é fácil
pegar um mentiroso. Já escrevi em algum lugar que não há originalidade que
resista a um bom levantamento bibliográfico. A busca eletrônica pode descobrir
em horas algo que levaria anos para fazer em bibliotecas, compulsando coleções
encadernadas de jornais empoeirados e obscuros. O miniconto de Hemingway não
perde com isso sua força literária. Ela fica até maior se considerarmos agora,
podendo fazer a comparação entre as sucessivas versões, que o texto foi sendo
limado, reduzido, aperfeiçoado até chegar à sua irretocável versão atual de
seis palavras. O que perde é a “lenda urbana” criada em função do autor famoso.
E por vias transversas acabamos batendo noutra característica da cultura
digital: a mania de atribuir uma boa frase a uma pessoa famosa, na crença de
que isso ajudará a propagá-la. Crença perfeitamente justificada, aliás.