quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

3698) Outros adeuses do ano (31.12.2014)



Tive poucos papos com Eduardo Coutinho, um dos maiores documentaristas brasileiros, mas um ficou na História. Eu estava em Campina Grande e me liga Rômulo Azevedo avisando que Coutinho estava na cidade, com equipe. Estavam filmando na Paraíba, o dia era de folga, e queriam saber “o quê que rola”. Eu anunciei: “Show de Braulio Tavares no Buracão, o bar de Noaldo Nery, Campina inteira conhece, atrás da AABB.” Vai a equipe (Edgar Moura é testemunha), eu canto as lorotas de sempre, toma-se a cerveja de sempre, conversa-se o que se conversa entre cinéfilos meio de-fogo e embalados pela música.  Nem Coutinho nem ninguém quis revelar o que estavam filmando. Dois anos depois, eu soube: era Cabra Marcado para Morrer.

O tempo silenciou André Carneiro, mas só metaforicamente.  Ele, que publicou aos 85 anos um volume de contos inéditos com mais 600 páginas, deixou também inéditos, aos 92, textos suficientes para mais uma coletânea.  André foi poeta, fotógrafo, editor, hipnotizador, artista plástico, e um dos grandes autores da Primeira Onda da ficção científica brasileira, nos anos 1960. Até o fim, esteve produtivo e lúcido. Via a ficção científica como uma parte especialmente brilhante de um vitral muito grande, muito complexo, feito de imagens e de histórias. Tinha razão.

Hermano José foi o primeiro diretor que montou na Paraíba minhas primeiras peças de teatro, escritas quando eu morava em Salvador: Quinze Anos Depois” (com Ranulpho Cardoso Jr. e Socorro Brito, ou Numa Ciro) e Trupizupe, o Raio da Silibrina, também chamada O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei.  Eu e Hermano tínhamos um senso de humor e de sátira muito parecido.  Ele era sempre um gentleman, e defendia um teatro devastadoramente sarcástico, cheio de raiva e de riso.  Alguém que sempre me dizia: escreva mais, todo mundo gosta do que você escreve. 

André Setaro foi o primeiro cinéfilo com quem engatei um diálogo ao botar os pés em Salvador em 1973, para assistir a II Jornada Nordestina de Curta Metragem.  Poucos anos depois eu já estava morando lá, escrevia sobre cinema do Jornal da Bahia, e André na Tribuna da Bahia.  Ditávamos cátedra um para o outro bebendo e pontificando, sem levar nada muito a sério, a não ser os filmes propriamente ditos. Fui embora da Bahia, sei lá mais por quê.  Depois do Facebook, nos reencontramos.  Conversávamos sobre Hitchcock e Buñuel, sobre Brigitte, sobre cigarro. André era um cineclubista de causas impossíveis.  Saiu a notícia de sua morte. Depois, a página do Facebook continuou a ser alimentada, com posts que pareciam dele.  Para mim, André Setaro é o primeiro habitante da Singularidade.