Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba" (Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
terça-feira, 19 de agosto de 2014
3582) Histórias absurdas (20.8.2014)
Tem Firricriz, por exemplo. Firricriz era um cão (=um diabrete), numa história que eu ouvi quando era pequeno e acho que nunca vi escrita em lugar nenhum. Ele aprontava traquinagens, era um “trickster” meio gremlin, meio saci. Às folhas tantas, todos o perseguiam e ele entrava pelo ouvido dum cara e se refugiava lá dentro. O cara doido, gritando de agonia com aquele diabrete desorganizando o juízo dele, e ninguém conseguia puxar o diabo pra fora. Aí alguém mandou a família à cozinha, trazer panelas e conchas e percussões de todos os tipos, e mandou todo mundo bater e gritar com toda força. Firricriz lá dentro espantou-se, chegou perto da orelha e perguntou o que era aquilo. Aí gritaram que era o mundo que estava se acabando e que todo mundo ia morrer. Firricriz apavorou-se, saiu do juízo do cara e assim que saiu foi preso.
Esta história, por sua vez, me lembra uma anedota meio ionesca, sobre uma mulher que estava grávida e nada de parir. Nove meses, dez, onze, já estava pra inteirar um ano e nada do menino se manifestar. O médico disse ao casal: “Só tem um jeito de obrigar ele a sair. Vamos apertar o espaço lá de dentro. Pra desalojá-lo. Vamos empurrar pra dentro da barriga da senhora essa poltrona.” Aí empurraram a poltrona do consultório pra dentro da mulher, mas o menino teimou em não sair. O médico disse: “Vamos empurrar aquele violão ali!” Empurraram o violão na mulher, e nada. Em desespero de causa, o médico disse: “Vamos enfiar uma garrafa de cana! Quero ver se ele não sai!” Fizeram, e coisa nenhuma. Aí o médico pediu arrego e disse: “Prepara a cesariana.” Abriram a mulher e o menino estava sentado na poltrona, tomando cana, tocando violão e cantando: “Daqui não saio / daqui ninguém me tira...”
A primeira história (que não é anedota) parece fazer mais sentido do que a segunda, até porque parece ter (e não tem) uma mensagem moral. A segunda não parece significar nada. Numa mesa de bar as pessoas riem, mas se lerem algo assim num livro de contos, p. ex., acham que não entenderam. A anedota, o episodiozinho surreal com “punchline” acachapante, não tem obrigação de fazer sentido, nem tem compromisso com algum código moral, nem intenção de parecer um retrato realista da vida. A anedota é por um lado o mais livre dos gêneros, porque a rigor trata-se apenas do episodiozinho, mas nem todos são capazes de apreciá-lo, e menos ainda são capazes de criar material original dentro duma fórmula tão presa. Porque de uma coisa a anedota jamais pode prescindir: da gargalhada incontível ao ouvir a última linha e ver espoucar o flash do humor rápido, que é como porre de lança, dá um zuín e logo passa.
3581) O que é a vida (19.8.2014)
Reza a lenda que numa certa tarde sombria e invernal, na cidade de Göttingen, o filósofo Arthur Schopenhauer vinha caminhando lentamente pela avenida, mergulhado em metafísicas inquietações. Chuviscava, o chão estava cheio de poças dágua, e o filósofo se deteve perto do meio-fio, esperando que diminuísse um pouco o entrecruzar de cabriolés e tílburis sobre as pedras da rua.
O espetáculo do mundo passava, alheio à sua presença, e o filósofo deixou-se embalar por pensamentos, sem notar sequer, em torno dos seus pés, uma poça dágua, visto que a chuva continuava a cair, molhando seus cabelos e o seu casaco.
Vendo aquela cena, e notando as roupas puídas do transeunte, um policial de cassetete em punho aproximou-se e o interpelou: “Quem é você? De onde vem, para onde vai? O que está fazendo aqui?”
Schopenhauer voltou-se lentamente para ele e respondeu: “Que coisa interessante. Eu estava justamente perguntando a mim mesmo: Quem sou eu? De onde venho, para onde vou? O que estou fazendo aqui?"
Os filósofos e os soldados de polícia fazem as perguntas essenciais da razão de nossa presença na Terra. Todos temos a obrigação de fazer essas perguntas, embora ninguém que seja sensato espere respondê-las em algum momento. São perguntas que não procuram descobrir “a resposta”, como numa charada ou numa adivinhação. O que essas perguntas pretendem é, sendo formuladas a sete bilhões de pessoas, produzir sete bilhões de respostas. Nenhuma delas mais verdadeira ou mais equivocada do que as outras.
Jean-Paul Sartre contava em suas memórias que durante a vida toda se sentiu um fingidor, uma fraude, um cara sem direito de estar no mundo. Ele usava a imagem do sujeito que está viajando num trem mas não tem o bilhete. “Passei a vida escrevendo livros,” dizia ele, “porque se um dia o fiscal do trem viesse me pedir o bilhete, que continuo não tendo, eu lhe mostraria os livros e diria: Estou na Terra com esta função.”
Todo mundo está aqui para fazer alguma coisa. Mesmo o viciado da cracolândia sente que precisa fumar crack todo dia, para justificar sua presença no mundo. Mesmo um monge indiano que vive de jejum e meditação usa os dois como um bilhete para exibir ao fiscal do trem.
Bob Dylan dizia: “You gotta serve somebody”. Não existe almoço grátis, e a vida é um banquete caríssimo e você tem que deixar algo em troca. Vamos ter que fazer alguma coisa para responder aquelas quatro perguntas. Podemos até nos recusar a respondê-las. Mas nenhum ser humano consciente as ignora, nenhuma pessoa capaz de pensar escapou de fazer essas perguntas a si mesmo em algum momento, e elas são perguntas para as quais é preciso inventar respostas.