(Zazie no Metrô, Cosac Naify, 2009)
Raymond Queneau, um dos meus autores mais queridos (ver
aqui: http://tinyurl.com/lprpneb)
escreveu de tudo e refletiu sobre tudo. Um dos seus assuntos preferidos era a
diferença (para ele gigantesca) entre o francês escrito e o falado. Francês é uma língua invocada, cheia de
partículas enigmáticas, letras mudas, hífens e acentos e sinais diacríticos eriçados
em todas as direções. Parece aqueles apartamentos de viúvas idosas e chiques,
repletos de bibelôs, adereços, quinquilharias ornamentais preservadas a todo
custo.
Queneau sugeriu a criação de um “neo-francês”, depilando o
idioma de todas essas franjas descartáveis. Não colou, claro. É mais fácil a
Vigilância Sanitária de lá proibir certos queijos. Queneau comentava a
tendência do francês a uma “coagulação fonética” em que os sons tendem a se
fundir e as letras a se multiplicar. No texto “Écrit em 1937” (em Bâtons,
Chiffres et Lettres, 1965), ele faz longos comentários sobre este tema e
conclui: “On népa zabitué, sétou. Unfoua kon sra zabitué, saira toussel.”
(Estas palavras exóticas, ditas em voz alta, serão entendidas por quem as
ouvir; é o neo-francês fonético, mandando a etimologia às favas.)
Em português, a tradução lusitana de Alexandre Rodrigues (Círculo de Leitores, Lisboa, 1974) simplifica: “Donde parte este cheirete?”. Em 1985 saiu pela Rocco a tradução de Irène Monique Harlek Cubic, que diz: “Pômakifedô!”. A versão mais recente (2009) é a de Paulo Werneck para a Cosac Naify: “Dondekevemtantofedô?”.
Só a análise dessas versões, das opções possíveis, das escolhas feitas, das pequenas infidelidades e dos volteios criativos, daria um artigo imenso. Mas é um bom exemplo daqueles momentos em que dificilmente, em cem traduções, teremos duas iguais. A aglutinação sonora e semântica duma palavrinha assim é de tal porte que ela vira um nó indeslindável. É preciso inventar outra palavra, e nesses momentos a tradução se torna meio psicografia. É preciso entender como Queneau pensava, imaginá-lo tendo nascido no Brasil e como ele inventaria em português essa palavra de abertura. Que equivale a um “provocativo movimento”, a uma declaração de princípios, a um manifesto estético e social.