(Garcia Márquez, por Charles Burns)
A imprensa do mundo inteiro está dando um balanço na
obra literária de Garcia Márquez, falecido recentemente. Não direi que ele era
uma unanimidade junto ao público e à crítica; conheço pessoalmente gente que
não gosta, que o acha meio “macumba para turistas”, um “folclorizador da
miséria, como Jorge Amado” (já ouvi isto). Eu não acho. A leitura de Cem Anos
de Solidão aos 20 anos mudou minha compreensão da literatura e da América
Latina. Curiosamente, muitos que não gostam de Márquez são fãs de Borges. Veem Borges como o que todo latino-americano
deveria ser: civilizado, lendo latim e alemão, conhecendo a filosofia clássica
e pensando de forma apolínea (Borges detestaria essa descrição, aliás injusta;
é o modo como ele é visto, não o que ele era). Márquez era um escritor formado
em redação de jornal, esquerdista, bigodudo, plebeu total.
Seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel traça
duas linhas paralelas de sua visão da América Latina, dando substância ao que
veio a se chamar de realismo mágico. Por um lado, há os aspectos bizarros e
extraordinários da realidade física e mental do continente, tudo que parece
estranho aos que vêm do Hemisfério Norte e determinam o que é normal e o que
não é. Por outro lado, há a espantosa desigualdade social do continente,
resultado da pororoca inicial e posterior convivência entre a brutalidade do
colonizador e a do colonizado (aqui se praticava a escravidão, o canibalismo,
os sacrifícios humanos).
Nos seus romances, muitos detalhes atribuídos ao
realismo mágico eram meras reconstituições de fatos históricos. Nisso, Márquez
dava uma lição que autores tão diferentes como Tim Powers ou Bruce Sterling
souberam utilizar bem: pegue da realidade o que ela tiver de mais
inacreditável, e deixe sua ficção apenas um ponto abaixo. Qualquer crítico que
listar as coisas mais impossíveis do enredo vai quebrar a cara ao ver que eram
reais.